terça-feira, 19 de junho de 2012

RETRATOS DE INFÂNCIA DA MENINA POETA


          O cachimbo do avô esfumaça a casa. O olhar duro condensa a retidão das coisas justas e certas, mas não conta como custa mantê-lo.  Somente a pele amarelada e os pés arrastando-se no assoalho encerado falam do seu cansaço.  Parece um padre quando toma do copo de vinho.  Quando sorri e conta as mesmas histórias, a menina suspira aliviada.  A avó parece ter os cabelos grudados; untá-los com babosa é um ritual semanal e só depois de ajudá-la a menina pode deitar-se na grande barriga e escutar o barulho que faz.  Barriga nenhuma seria igual à da avó.  Nem o cheiro de chuchu frito e polenta com molho.  Nem as ameixas e taturanas do quintal.
         O pai não explica muito.  Traz nos ombros uma caixa de feira e quando aponta na esquina é o sinal de que está tudo bem.  É festa.  Os tomates, as laranjas, cheiram como uma parte boa da vida, deixam tudo mais perto, acessível.  A menina toca as escamas dos peixes e parecem cristais.  Imagina-se como a concha rosada, medrosa e cativa, espiando.  O pai toma banho,  e mesmo assim, permanece alguma coisa nele que recende a superfície, a natureza.  Quando no seu desespero adulto chega irado, ela deseja não mais vê-lo, mas, às vezes, ele se encolhe no chão e  tem vontade de abraçá-lo, como se pudesse deter toda dor. Esforça-se para entendê-lo, mas só consegue ver o suor que salga seu peito.
         A mãe reza ajoelhada na escuridão e a menina se encanta com sua paciência com Deus e conformidade com o peso do trabalho.  Não o rejeita, só pede forças.  No Natal enfrenta uma fila comprida para conseguir um brinquedo de graça.  Coloca embaixo das camas das crianças com um chocolate e um hálito protetor.  Todos os dias esfrega a roupa da casa como se lavasse a sujeira do mundo.  A menina senta na escada e acredita que a mãe chora porque a roupa está encardida.  Quando encosta-se à pele tão macia, cheirando gostoso, acha que a vida também pode ser assim, limpa e suave, como a mãe.
         Enternecida a menina se mostra com os irmãos.  Supõe protegê-los com a mão no ombro, mas não acha que merece quando os pequeninos correm ao seu encontro com tanto amor.  Exige-se perfeita, porque eles a seguirão.  Ouvira isso não sabe onde, nem quantas culpas acumulou.
         As amoras da rua são provocantes, assim como o menino que faz xixi e demora, fingindo não estar sendo visto.  A cor das amoras mancha o branco e custa esquecer o cheiro extasiante do pecado (à noite a menina faz de conta que o travesseiro é um deus de barbas brancas e chora).
         As outras crianças da rua estranham esta que fica da janela observando, e a  isolam. Jogam bola, brincam de pega, correm na chuva, escondem-se no musgo do poço, no limoeiro, no esterco, na lama e cheiram a cachorro molhado e mamão verde.  A menina queria um jeito de dizer às outras que não estava tão alheia. Bastava olhar, era o seu modo de participar, registrar era sua função.  Mas, eles a deixam e nem ligam quando parece divagar e contar estrelas.
         Talvez um dia gostasse de ser astronauta, sabe lá.  Mas astronauta gostaria do cheiro de tinta dos livros, do oleado da carteira da escola, de lápis de cor, das meias do uniforme, da boina e daquelas folhas tão brancas?  Só ela parece precisar tanto daquilo; libertar as palavras que se atropelam na garganta, esvaziar a alma, revelar os pactos e segredos das noites, a enraizada intimidade com sua janela e o mundo, captar e entender a poesia que brota e a faz assim.
         O avô, o pai, a mãe, as amoras, a terra vermelha, as crianças suadas, as estrelas, o cheiro da chuva de dezembro (que tantas vezes lhe pareceria igual), o apito da fábrica de vassouras, as folhas, as promessas de ano novo, nada conseguiu. 
Nem deixaram perceber, lembrar à menina da janela, que tudo é tão profundo, mas tão breve.  Que tudo se degenera, células, sonhos, mas paradoxalmente permanece.  Tudo na rápida mutação se armazena e é preciso agarrar-se na seqüência dos minutos e é preciso, sobretudo,  navegar nessa continuidade, sabiamente.
         Parecerá, sempre, que só a vivemos depois, como lembrança, a vida que escorre e passa por nossos dedos e nossos olhos.

Do livro ESBOÇOS IMPERFEITOS
De Vania Clares