O
cachimbo do avô esfumaça a casa. O olhar duro condensa a retidão das coisas
justas e certas, mas não conta como custa mantê-lo. Somente a pele amarelada e os pés
arrastando-se no assoalho encerado falam do seu cansaço. Parece um padre quando toma do copo de
vinho. Quando sorri e conta as mesmas
histórias, a menina suspira aliviada. A
avó parece ter os cabelos grudados; untá-los com babosa é um ritual semanal e
só depois de ajudá-la a menina pode deitar-se na grande barriga e escutar o
barulho que faz. Barriga nenhuma seria
igual à da avó. Nem o cheiro de chuchu
frito e polenta com molho. Nem as ameixas
e taturanas do quintal.
O
pai não explica muito. Traz nos ombros
uma caixa de feira e quando aponta na esquina é o sinal de que está tudo
bem. É festa. Os tomates, as laranjas, cheiram como uma
parte boa da vida, deixam tudo mais perto, acessível. A menina toca as escamas dos peixes e parecem
cristais. Imagina-se como a concha
rosada, medrosa e cativa, espiando. O
pai toma banho, e mesmo assim, permanece
alguma coisa nele que recende a superfície, a natureza. Quando no seu desespero adulto chega irado,
ela deseja não mais vê-lo, mas, às vezes, ele se encolhe no chão e tem vontade de abraçá-lo, como se pudesse
deter toda dor. Esforça-se para entendê-lo, mas só consegue ver o suor que
salga seu peito.
A
mãe reza ajoelhada na escuridão e a menina se encanta com sua paciência com
Deus e conformidade com o peso do trabalho.
Não o rejeita, só pede forças. No
Natal enfrenta uma fila comprida para conseguir um brinquedo de graça. Coloca embaixo das camas das crianças com um
chocolate e um hálito protetor. Todos os
dias esfrega a roupa da casa como se lavasse a sujeira do mundo. A menina senta na escada e acredita que a mãe
chora porque a roupa está encardida.
Quando encosta-se à pele tão macia, cheirando gostoso, acha que a vida
também pode ser assim, limpa e suave, como a mãe.
Enternecida
a menina se mostra com os irmãos. Supõe
protegê-los com a mão no ombro, mas não acha que merece quando os pequeninos
correm ao seu encontro com tanto amor.
Exige-se perfeita, porque eles a seguirão. Ouvira isso não sabe onde, nem quantas culpas
acumulou.
As
amoras da rua são provocantes, assim como o menino que faz xixi e demora,
fingindo não estar sendo visto. A cor
das amoras mancha o branco e custa esquecer o cheiro extasiante do pecado (à
noite a menina faz de conta que o travesseiro é um deus de barbas brancas e
chora).
As
outras crianças da rua estranham esta que fica da janela observando, e a isolam. Jogam bola, brincam de pega, correm
na chuva, escondem-se no musgo do poço, no limoeiro, no esterco, na lama e
cheiram a cachorro molhado e mamão verde.
A menina queria um jeito de dizer às outras que não estava tão alheia.
Bastava olhar, era o seu modo de participar, registrar era sua função. Mas, eles a deixam e nem ligam quando parece
divagar e contar estrelas.
Talvez
um dia gostasse de ser astronauta, sabe lá.
Mas astronauta gostaria do cheiro de tinta dos livros, do oleado da
carteira da escola, de lápis de cor, das meias do uniforme, da boina e daquelas
folhas tão brancas? Só ela parece
precisar tanto daquilo; libertar as palavras que se atropelam na garganta,
esvaziar a alma, revelar os pactos e segredos das noites, a enraizada
intimidade com sua janela e o mundo, captar e entender a poesia que brota e a
faz assim.
O
avô, o pai, a mãe, as amoras, a terra vermelha, as crianças suadas, as
estrelas, o cheiro da chuva de dezembro (que tantas vezes lhe pareceria igual),
o apito da fábrica de vassouras, as folhas, as promessas de ano novo, nada
conseguiu.
Nem deixaram perceber,
lembrar à menina da janela, que tudo é tão profundo, mas tão breve. Que tudo se degenera, células, sonhos, mas
paradoxalmente permanece. Tudo na rápida
mutação se armazena e é preciso agarrar-se na seqüência dos minutos e é
preciso, sobretudo, navegar nessa
continuidade, sabiamente.
Parecerá,
sempre, que só a vivemos depois, como lembrança, a vida que escorre e passa por
nossos dedos e nossos olhos.
Do
livro ESBOÇOS IMPERFEITOS
De
Vania Clares