quarta-feira, 19 de outubro de 2022

PRIMEIRA NOTA DA NOSSA SINFONIA



 Que te esqueças de contar as gotas,

não contes. Até descobrir-se

sorvendo aos goles

o que vem sem medidas:

a poesia, a emoção.

Que degustar seja um ato prazeroso,

delicado e na surpresa do gosto

se faça novo acorde para a sinfonia

que escrevemos na alma.

Imaginamos os movimentos,

ensaiamos os passos e a sintonia se faz,

intensa e farta. Reergue-se a vontade

e estamos atentos, leves, entregues

a este presente que dançamos agora.

Somos raros e privilegiados.

Existe música. E a ouvimos.

domingo, 28 de agosto de 2022

terça-feira, 21 de junho de 2022

MEU SERTÃO


Eu bem me lembro.

Vem como sonho, um norte,

um candeeiro de luz pálida,

brilhando bem menos

que a lua rodeada

de estrelas abundantes.

O casebre de paredes

caiadas, carcomidas,

um cheiro de ar seco

e o silêncio da noite

fechando o dia de sol ardente.

Folhas esturricadas estalando,

pingos dos suores da labuta,

cigarras cantando.

Lembro do caramanchão

carregado de maracujás,

os jasmins amarelados.

Os chuchus resistindo

no verde em meio a samambaias,

poças de esterco e varejeiras.

Lugar de gente humilde eu diria,

a simplicidade entendida

sem ambições ou revoltas.

Bastava quarar as roupas

embarreadas e um banho de rio

para as 6 horas da Ave-Maria.

A bisavó e a corcunda no fogão

a lenha,  o feijão com louro

e as crianças manchadas de amora.

Não o visito, não tem no mapa,

mas me lembro .

Encontra-se entranhado

na minha memória

em algum lugar no tempo.

 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

REMANESCENTE


O rastro do amor que estancou

também salva, milagrosamente.

Findou a agonia, o desejo cessou.

No decurso fatal, religiosamente

 

recolhe-se os feitos pelas bordas.

Amalgamadas, marcas de beijos

nos papéis amassados, as ávidas

palavras, promessas de arranjos.

 

Remanesce o silêncio, fragmentos

do enigma que envolve os amores

belos,  que acalmam sem lamentos,

mas encerram o traço dos fulgores

 

sentidos que serenavam a noite.

No mais que sagrado do coração

designa ao eterno, complacente,

mais que sentimento, devoção.

 

No acelerado preciso do tempo

jazem ternuras sacramentadas.

 

quarta-feira, 1 de junho de 2022

PERMANÊNCIAS OUTONAIS SOB O SIGNO DA LEVEZA de ISA CORGOSINHO


 

PERMANÊNCIAS OUTONAIS SOB O SIGNO DA LEVEZA

Isa Corgosinho

            Ao final da leitura do livro de Vania Clares, veio-me a vontade de sistematizar questões que fui anotando durante a leitura. Assim, deixo aqui registrados os meus devaneios interpretativos de suas Permanências Outonais.   

A prosa poética de Clares deixa entrever em suas fontes a ambivalência das personagens femininas de Clarice Lipector.  Com essa chave genealógica, ousamos mergulhar no processo de estranhamento intencionalmente construído numa temporalidade, cuja noite tem a mesma duração do dia. O resultado é o mergulho conjunto no equinócio intensamente vivenciado pela constante alteração do estado de consciência da personagem outonal. A gangorra do tempo malbaratado situa esse romance entre aqueles dinâmicos e interativos, também adepto à viagem pelo fluxo de consciência. Após um esboço quase perfeito para um desfecho trágico, seguem-se cenários que entrecruzam vida adulta, infância, juventude e proximidade da velhice.

Permanência da estação outonal pode parecer, mas não é um paradoxo: a personagem narradora imprime seus rastros no entre lugar do verão e o inverno. A estação outonal é aquela da transição, sacudida por fortes ventanias existenciais que marcam os capítulos Alternativas para um adeus e Passos de um esboço quase perfeito.  Tomada por uma consciência profunda da inexistência de sentido em tudo que pulsa, a mulher despe-se para a queda ou voo final. Anestesiada pela dor construída no vazio congelante, debruça-se no parapeito e pinta seu último quadro outonal, entretanto, seu corpo recebe o sopro da possibilidade e se recolhe na dualidade e desordem, viver é quase uma ordem, mesmo no limbo. As folhas que rolam ao vento, as cores delineadas, um tênue fio, o vento frio, as geadas alternam-se com a estação das frutas, dos tapetes de folhas, que caem e se renovam.  Essa ausência de sentido da existência é confrontada por uma marcada oposição entre leveza x peso. O exercício de autodeterminação é realizado cotidianamente pela personagem em oposição ao irremediável, inelutável peso de viver; a mulher confronta o acaso, a imprevisibilidade dos acontecimentos dramáticos que cercam a sua existência pintando os quadros reflexivos da leveza em matizes da travessia.

Italo Calvino, no livro Seis propostas para o próximo milênio, lançado no Brasil em 1990, nos apresenta alguns valores literários que deveriam ser preservados como lições imprescindíveis, no curso do próximo milênio. As conferências foram escritas para serem apresentadas nas Charles Eliot Norton Poetry Lectures na Universidade de Harvard, em Cambridge, mas infelizmente Calvino nos deixou no ano de 1985. As palavras de Calvino, no entanto, continuam reverberando eloquentes:

Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar. Quero pois dedicar estas conferências a alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura que me são particularmente caros, buscando situá-los na perspectiva do novo milênio.  (CALVINO, 1990, p. 11)

Entre essas lições, que falam para a posteridade, A Leveza parece-me aquela inerente à prosa poética de Clares. Vários aspectos desse romance nos leva ao encontro da Leveza, tal qual a entende o escritor italiano. A própria escolha da estação outonal está repleta dos sentidos da leveza em oposição ao pesadume dos dramas vivenciados pela narradora.  Mesmo nos momentos em que o peso da existência parece enredar o destino da personagem, como no capítulo Alternativas para um adeus, um esboço perfeito para o suicídio, o leitor se depara com um quadro pintado pela imaginação da personagem, em que as imagens da leveza sustentam a narrativa:

Fico a imaginar a tela que pintaria numa noite como esta, em que as folhas rolam ao vento, e em que me domina o impasse da decisão. Hoje as cores no desenho estariam bem delineadas e definidas, divididas por um tênue fio, unindo os dois lados. (CLARES, 2010, p. 19)  

A leveza aqui comparece nas imagens das folhas que rolam ao vento, pela divisão de tênue fio, numa relação de equilíbrio e desequilíbrio, o que ficou no filtro das permanências sutis. Essas imagens se contrapõem à mágoa e ao amargo da boca. A visão sincrônica de imagens sutis atua como um filtro do fel que pesa no paladar, mas não é o fel da fealdade.

A imagem do fio nos remete ao ofício das Moiras de fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida; as três irmãs determinam tanto o destino dos deuses quanto o dos homens. A narradora encena o ofício de Átropos, a que corta o fio, mas é detida por Cloto que segura o fuso e tece o fio da vida, ora é Laquesis, que puxa e enrola o fio tecido, e é a figura da leveza, impressa em sua narrativa, que mantém Átropos distante, mas não ausente. Há uma inversão e reversão do ciclo vital: tudo que vive morre, tudo que morre vive. A personagem é o próprio fio nas mãos do destino, mas depois assenhora-se dele.    

Estou entre romper o tênue fio e nunca mais conseguir me reaver. Estou entre romper em duas eternamente. E não seria nada verdadeiro. Ser uma das partes ou as duas separadamente. Porque sou o próprio fio. (CLARES, 2010, p. 20)

Hoje eu sou o adubo do meu fio. O que escolherá entre sucumbir na lama ou fundir-se à semente, reiniciando o ciclo constante. (CLARES, 2010, p. 24)

            É no seio da própria literatura, com epígrafes da escritura sagrada e versos de autoria da própria Clares, que a narradora personagem lança possibilidades dialógicas para a complexidade da vida da linguagem: sobretudo ao recorrer à ironia com as citações bíblicas e ao retirar peso à estrutura da narrativa, investindo na precisão das imagens poéticas, evitando tudo que é vago ou aleatório.

A sabedoria ao buscar o pincel mais fino, a tela mais suave e clara.  A resistência à sufocação das tintas. A moldura mais perfeita.  A adequação ao expor a consistência de um fio retocado. Pelas sábias mãos da vida. (CLARES, 2010, p. 24)

A narrativa é concisa e confronta as dualidades com as ambivalências do entre lugar, a travessia. A personagem narradora oferece ao leitor um processo psicológico no qual interferem elementos sutis, situados em momentos marcantes em sua vida: os traumas da infância, os primeiros desejos, o amor, os sonhos e os acontecimentos dramáticos, a vontade de viver e o desejo da morte, a intensidade e a resiliência.

Esses dias têm subvida, tique-taque de relógios.

Sirenes de fábricas, embargo de crepúsculos.

Querência de amanhecer

e distante sensação de sonho e brisa. (CLARES, 2010, p. 65)

Nas reflexões existencialistas, a personagem nos remete aos diferentes recortes históricos, marcados por experiências que acompanham a sua formação e as transformações culturais e políticas que marcaram as gerações do final da década de 60 até o final da década 80, aproximadamente. As citações de fragmentos musicais, nomes de bandas, astros do cinema nos remetem aos anos de intensas lutas pelas liberdades coletivas e individuais. Como um imperativo categórico, a narradora personagem constrói como medula de sua narrativa o desdobramento do evento amoroso, que marcará como uma nódoa indelével o inacabamento da travessia. 

O feedback narrativo figurativiza, apresenta citações e alusões sobre as utopias coletivas que estão subjacentes a igualmente utópica história de amor. Na dialética das liberdades amorosas, a mulher das permanências outonais deseja o mais profundo e desafiador que é o viver juntinhos como nossos pais:      

[...] e vamos sair pela Augusta de madrugada comer churrasco no Eduardo´s às cinco da manhã e vamos ver o dia nascer com as luzes rosa-azuis enquanto as pessoas correm para o trabalho porque algumas pessoas não são artistas e não se dão o direito de ver o dia nascer assim sem dormir como nós que somos poetas seresteiros e poderemos ser agora tão namorados e apaixonados que você sentirá que não poderá deixar de me ensinar a ser mulher a sua mulher para a vida inteira nós podemos ficar velhinhos. (CLARES, 2010, p.43)

Do grande caldeirão das utopias, ao qual São Paulo forneceu e temperou com os seus melhores ingredientes, restou também o caldo amargo das orgias libertárias, principalmente no tocante ao uso das drogas. O romance refrata, sobretudo, a distopia marcada pelo vírus da AIDS: da década de 80 até 2012, as fontes de pesquisa apontam 656.701 casos de AIDS, atingindo principalmente uma geração que se dispôs de corpo e armas a mudar o mundo. O vírus ataca justamente os centros do gozo do amor e do prazer. 

que queria mesmo dizer porque o amor é tão inadiável e urgente em meio às brigas que não serão nossas mas consequências do mal de uma geração inteira que ficou tão doente e inconsciente da sua própria doença maldita disfarçada em sonhos que vêm em saquinhos branquinhos comprimidos brancos destilados envelopinhos marrons sequinhos cheirosos tal esterco enfumaçando entorpecendo o sonho que não acabará nunca assim como um sonho nas acabará sim a condição da conveniência diante da realidade das limitações fazendo assim tão encantado o sonho das varandas entupidas de samambaias e fores de maracujá de balanço com almofadas coloridas e os cabelos brancos voando ao vento num por de sol alaranjado...)   (CLARES, 2010, pp. 43-45)     

Jean Baudrillard[1] interpreta o final desse período como uma pós-orgia. A orgia está inscrita na modernidade: o da liberação em todos os domínios – liberação política, sexual, da mulher, da arte, das forças produtivas e de destruição, das pulsações do inconsciente etc. Assim como em Baudrillard, o romance de Clares figurativiza o percurso da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. A pergunta que nos espreita ao final é: o que fazer após a orgia?

Não sei quando aconteceu, nem como, mas aconteceu. [...] Fiz uma loucura. Lá em casa, sabe, peguei uma seringa do lixo e a usei. Tinha muita gente lá. Depois veio aquela febre alta, os tremores. Pode ter sido nessa loucura. Ou naquelas compulsões de vários dias em que não tinha noção nenhuma do que fazia. Em que eu acordava dormindo ao lado de gente que eu não conhecia, ou às vezes, no chão de qualquer rua, tendo de perguntar aos outros onde estava, ou todo machucado com as roupas sujas, assaltado, ou dentro do carro batido em um muro qualquer. Pode ter sido qualquer um desses dias. Mas o fato é esse. Estou com o vírus, sou um portador. (CLARES, 2010, p. 55).

O filósofo francês busca respostas ao constatar a contaminação respectiva de todos as categorias, substituição de uma esfera por outra, confusão dos gêneros. O sexo circula em toda parte, menos na sexualidade. O político já não está mais no político, mas infecta todos os domínios: a economia, a ciência, a arte, o esporte. Baudrillard enfatiza: o esporte já não está no esporte _ está nos negócios, no sexo, na política, no estilo geral da performance.

Aqui parece que encontramos rastros do percurso do corpo do homem amado, contaminado pelo vírus: a AIDS corresponde menos a um excesso e sexo e gozo do que uma descompensação sexual por infiltração geral em todos os domínios da vida. No entendimento de Baudrillard, é em todo o sexual que a imunidade se perde, que se perde a diferença sexual e, portanto, a própria sexualidade. É na difração do princípio da realidade sexual, no nível fractal, micrológico e desumano, que se instala a confusão elementar da epidemia, conclui o filósofo.

Como conseguir falar de nossa época, de acontecimentos tão recentes, representando-os com a ideia de leveza? Clares encena a busca da leveza como um objeto inalcançável, como uma busca sem fim. Assim como Milan Kundera em A insustentável leveza do ser, em Permanência Outonais é possível constatar dramaticamente o inelutável peso do viver: também no romance da escritora paulista, o peso de viver está em toda forma de opressão; na obscura rede de constrições públicas e privadas que acaba por aprisionar cada ser em suas tramas cada vez mais cerradas.  Os episódios entrecruzados dos períodos da descoberta do amor adolescente, do amor na juventude; dos projetos de profissão, da criação dos filhos, do sonho de envelhecer juntos, ou seja, todo um conjunto de coisas que apreciamos e escolhemos na vida por tudo que representa de belo e leveza, resulta, revela-se bem cedo de um peso insustentável. 

A superação acontece gradualmente pela vivacidade e inteligência, a personagem descobre o incessante ciclo da vida nas estações e isso a impede à queda final. A mudança do ponto de observação da vida pela ótica da poesia, muda sua imagem do mundo, recriando-o pela observação indireta da palavra poética. É na relação amorosa com a com as metáforas que o amor profundo pelo amado atinge o estado de leveza.

Sim, é só um passo para o universo, deixarei que partas, sempre foi teu sonho: uma nave de portas abertas, do tamanho da praia iluminada de luar. Vai, minha vida, que está terra é pequena demais para tua ansiedade, é densa demais para tuas asas, é frouxa demais para o teu grito, é abafada demais para sua liberdade. (CLARES, 2010, p. 65)

O leitor não encontrará nesse romance nenhuma forma de julgamento, condenação, mas atos de coragem na sustentação dos caminhos e descaminhos da relação amorosa, também ausente está o discurso reivindicatório de vítima de relações abusivas. Há uma espécie de renascimento na morte do amado. É o que nos declara uma voz intrusa, que substitui a narração em primeira pessoa. Ocorre uma transferência mais forte da pulsão de vida, herdada do amado: o gosto pela vida, a sua alegria ostensiva, escancarada, indiscriminada, inconsequente, que se derramava em noites, olhos e gargalhadas. A personagem abraça seu processo de autodeterminação, extrai coragem da potência lírica, do amor materno, da aceitação da vida como permanências outonais: as folhas que se renovam ao vento, os dentes ficados na fruta madura e o gozo insustentável da leveza do ser, o ser da poesia. O romance de Vania Clares é um presente edificante para nossas almas femininas, por isso meu coração atento escuta essa voz.  

Na aparente desordem do movimento dos corpos, extasiado contemplo o absoluto da noite. É nesse absoluto imutável, onde meu corpo se move em constante noite, a desordem não é senão a simetria perfeita para o milagre que surge, assim, no êxtase. (CLARES, 2010, p. 73).  

Hoje, num voo leve, me vejo.

Dispo-me sem medo dos disfarces tolos.

Sinto a centelha divina. Memória de luz.

Reconheço-me. (CLARES, 2010, p. 93)

                

 

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal _ ensaios sobre fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1996.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CLARES, Vania. Permanências Outonais. São Paulo: Sarasvati Editora, 2010.

 

 

Isa Corgosinho é de Brasília/DF. Professora universitária aposentada e poeta. Participou da Colheita Celeiro Literário Brasiliense (2020); Coletânea Enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II - Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal 2021); Livro Memórias da Pele, (Venas Abiertas – III Mulherio das Letras, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021)e Salvante IV – Entre Eixos (Sarasvati Editora, 2022). 



[1] BAUDRILLARD problematiza a AIDS no contexto dos fenômenos extremos no livro A transparência do mal.

 

terça-feira, 24 de maio de 2022

OUSADIA


Quero teu ritmo mais volátil,

pois bem sabemos dos passos

que inventamos nas noites meninas

sem cansaço.

Enquanto teu riso me prende

abandono profundidades

estagnadas de mim mesma.

Enquanto percorre em mim

a chama extasiante de te querer

mais inflama a vontade de me deixar percorrer

como percorrem os rios que invadem matas.

Quero a nascente dos dias

o abrigo presente dos ombros

o gosto doce de nossas bocas

o toque contagiante dos dedos

o remanso e a tempestade

o pertencer translúcido.

 


 

 

ORDEM


 

quinta-feira, 24 de março de 2022

SÃ LOUCURA


 

Mais nada me permitirei ser vago,

tudo urge no que resta no tempo,

guardado fica o que ainda indago,

como não houvesse discernimento.

E se hoje recolho o que plantei,

quisera a escolha tivesse um rumo,

foi só a intuição pela qual me guiei

que me deu a fé ditada, o supra-sumo.

Compreendo-me suspensa no divino,

obedecendo fielmente à sã loucura,

acatando sóbria o que ainda duvido:

qual ciclo abrandará da vida a fissura?


quarta-feira, 23 de março de 2022

OUTONO, DE PERMANÊNCIAS OUTONAIS


 


E outono seria sempre verde com folhas a cair com o vento. Quando todas as pessoas reavaliam as ações, tratando a pele tostada pelo sol ainda, quando um pingo de tristeza do cinza desce pelas faces. O outono, em que as folhas ressecadas, conformadas e obedientes pelo seguir da natureza, abandonam seus galhos e se deixam levar. Sim, nenhuma estação seria tão coerente quanto o outono, mas ainda não estava certa. Pois cederia o lugar às folhas novas, ao verde mais claro, à densidade mais tenra, à textura mais úmida. Cederia lugar à possibilidade de se reciclar. Porque tudo é assim, permissão e complacência. Ceder, permitir que o novo exista. E para isso, exercer a sua função.

Continuidade, simplesmente continuidade. Envergar a cabeça, reconhecer a parte que lhe cabe, sair de cena, rolar ao vento, definhar no solo, adubar a terra, ao sucumbir. Como vieste, irás ao .


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

RENOVARE DOLOREM


 


Rebusco as velhas imagens

e sempre paradoxalmente

me trazem novas sensações

determinando o fluxo no refluxo.

Danço novamente o passo,

Disfarço e invento outros .

(No atropelo de sempre

sobrepõe-se o inusitado

ser indecifrável e insaciável).

E em cada verso, em todo suspiro,

em cada olhar perdido, em todo ai dito,

eis que encerra a história sentida.

Nada evapora do condensado abrigo.

Na composição camuflada do que mostro,

aquele que atenta e rebusca,  captará

o que nem precisa ainda ser dito.

Somente o fluxo inevitável, o imediato,

gerando a coragem para transparências.


sábado, 12 de fevereiro de 2022

PEDIDO



Seduze-me com as tuas palavras,

derrama tua emoção em meu verso

com o mais puro que emerja de ti

— Cansa-me o ardor ensaiado,

do teatro de vozes gastas e impunes,

dos gestos sensatos e delimitados —

Alcança a minha alma a tempo

antes que me vença a descrença

e me apunhale ensandecida a dor.

Seduze-me de vida antes que se esvaia

esse meu arroubo de abrigar embriões,

antes que se dissipe na superfície

esse meu estado imperioso de amor

 

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

VOZ DO MEIO DA NOITE


 


Não, o sonho se foi e os vidros nos meus pés

não podem mentir.  Meus olhos ardem e não

posso fechá-los. O retrocesso seria covardia

e consequentemente, auto anulação.

Minhas mãos estão à frente,

apalpando e dissolvendo as paredes.

Meu ser inteiro reage, como se para animar

uma possível queda.

Sim, agora é o momento preciso

para as respostas.

Eu estou caminhando no meu caminho.

No meu.

 

Do livro Do Parapeito Vital, 1996