terça-feira, 30 de junho de 2020

CONTRATEMPO


Não vás ainda, espera.
contrariamos no tempo
o que sabíamos e ainda era
redentor, somente um abraço
tímido mas de acalento
que na memória refaço.

Não vás ainda, espera.
Há palavras que calei.
E por mais que sofrera
agoniada pela sorte
adiei, paralisei, congelei
perdi-me do possível norte.

Nada prevemos de depois.
Ficou uma lágrima disfarçada
e na gaveta, cartas de nós dois
de esperança, perdão, de amor
junto a uma foto amarelada
enquanto não havia temor.

Não vás ainda, espera.
Não esgotei em mim a poesia
que provocas e nem supera
outro fervor que não seja
descartado como heresia
do que em mim enseja.

Ignoramos. Sem nos dar conta
da nossa efemeridade tão vã.
Esperávamos essa afronta?
Deixamos ao acaso no tempo,
confiamos perdurar no amanhã
o que nos revelou o momento.

Tantos amores sepultados
antes da hora, não vividos
e forçosamente abortados
enlouquecem, aprisionam.
Da calidez do coração despidos
convertem-se em dor, estagnam.

Só vestígios pairarão no limbo
engrossando a estatística na lista.
Como notícia de tudo que é findo.
Faces sem alma anunciadas
sem dó, mais uma história fatalista
daqueles de despedidas negadas

segunda-feira, 29 de junho de 2020

INQUIETUDE



De algum lugar me espreita
o que virá.
De algum lugar sem tempo,
me espreita
e não sei se quero.
(Ou será assim o tempo,
determinado,
quando menos se espera ele vem,
impiedoso
e nos pega de surpresa).
Calma, não fiz back-up
da minha vida.
Ainda restam manuscritos
perdidos nas gavetas
e a desordem às vezes,
é tão necessária a mim,
como se me achasse
disposta sempre, a recomeçar
dessa mesma desordem.
Mas calma, não me pegue
assim de surpresa, o que virá.
Alguém me espera
pacientemente
na escura esquina,
e um anjo me ampara
em suas asas brancas.
Tantos papéis guardam segredos
e ninguém entenderia
envelopes lacrados.
A imagem do espelho
reflete a beleza
e a ingenuidade
de criança inquieta.
Chora,  mas não mostra as marcas,
embora insista em modelar
a matéria-prima para sua obra final.
Não estou pronta
para o que virá.
Porque faço dos instantes
a  eternidade.
E ainda preciso
desses instantes.


sábado, 27 de junho de 2020

TÁBUA DE SALVAÇÃO



Há instantes em que esmoreço
e todo esforço se faz necessário
para que eu esqueça que conheço
o caminho da sombra, o calvário.

Há instantes em que eu me perco
pelo retorno às tristes lembranças
que me prendem como um cerco
Onde me obscurecem as mudanças.

Há instantes em que repagino
cada passo, ação, atitude, reação
E vasculho dentro o que imagino
que possa me dar socorro, a salvação.

Ausência de fórmulas, nem as assertivas,
as utilizadas, as que em algum momento
serviram confortantes e quase paliativas
e anestesiaram, anuviaram o sofrimento.

Olho a minha volta e tudo segue igual.
Absorvo a fome do mundo e a retenho.
A injustiça escancarada, consensual,
normalidade. Também me abstenho?

Há instantes de luz quando me ergo
e busco argumento contra a paresia.
Tudo macero, assimilo o que enxergo
e recorro à carta na manga, à poesia .

quinta-feira, 25 de junho de 2020

CANTO DA TRANSMUTAÇÃO (OU CANTO ÀS BORBOLETAS)


Componho lembranças em elegias,
que recito como quem divaga
em outras, alheias paragens.
_   Reflete beleza o espelho
e me encontro num rastro de luz _
De qual alquimia me farto?
Preenchem a mesma terra,
o ser obreiro que tritura a dor
e o que se deleita em êxtase,
a embriaguez e a sobriedade,
a agonia e a euforia,
o diabólico e o divino.
Ainda me pertence a semente
protegida do vento e do fogo,
das palavras vãs e infames.
Ainda me pertence a semente
no aguardo de água e chão.
Mas o que me segue,  eu faço sombra,
mesmo que irredutível, insistente.
Acolhe-me, morada do sol
e ostenta flores brotando
a delinear um novo rumo.
Incorpora-me ao que obrigo às margens.
Pois o que me prende e me renasce,
o que me brinda ao acaso,
o que me segue pulsante,
é somente tão plena e sentida vida

RISCO


Neste teu mal
desejado holocausto,
imposto indefinido,
vestido e encoberto
de falsa calmaria,
repousam aparentes,
não pontos finais,
reticências.
Jamais te sacrifiques
ao incontrolável.
Permita se cumprir
o tempo do sonho.
Incendeia de tensão
paixão transparente.
Embarca na viagem
que te aborda.
E te conforta
a chorar sempre
de olhos brilhantes
retidos e completos
no afinal vivido.



ABSTENÇÃO




Anestesio ainda a ansiedade.
Entro na fila, no palco inacabado
e reluto, como sobrevivente
ou anormal que se alheia.
Arrasta-me o colosso de odores e sons
e a programada sensação que impõem.
À plateia que se alvoroça, indaga,
e inquieta aguarda as setas luzes,
eu abstenho a palavra.
Ainda ajeitarei o cenário pleno,
capaz de suportar a explanação
do meu espanto ante ser.
Rejeitarei mecânicos sorrisos
e tentarei resgatar em tempo
o sentido e a lágrima da emoção.
Antes que sucumbam os elos
e irremediável se distancie
a comunhão dos corpos,
a fusão de almas
que pactuam a vida.

Do meu segundo livro, 1996
DO PARAPEITO VITAL







segunda-feira, 22 de junho de 2020

CARTAS ATEMPORAIS QUATRO



Meu amor, meu amigo,

passei a noite relendo tuas cartas, daquele tempo em que desenhavas flores coloridas e com tanto carinho que eu podia sentir tua pele, teu suor impregnado no papel. Nunca havia recebido cartas assim, com selo do correio e tudo. A fissura de ir num canto escondido para absorver a leitura, egoisticamente. Reli todas, as que escreveste em longas ausências físicas, nos momentos de desabafo, quando esmorecíamos, ora eu, ora tu. A vontade é de pregá-las todas na parede, para não esquecer que houve sim, cumplicidade e compaixão mútua. Lembrei-me das nossas risadas, das longas conversas na mesa da praça, tomando cerveja e anotando nossos projetos, sob o sol das tardes frias. E também chorávamos à toa, de mãos dadas. Quando era descoberta e tato. E emoção.

Difícil deduzirmos como passamos a outro estágio. O de não externarmos ou não precisarmos mais, como se tudo o que sentimos já soubéssemos e falar, falar sobre, seria redundância ou exagero. Ou o contratempo da partitura que não ousamos acompanhar e perdemos o compasso. Ou quando o tempo nos intuiu atitudes ou imprecisões e nos envergonhamos de nossas fraquezas. Ou talvez tenhamos cansado de esperar vencermos o medo. Assumir outra vida repleta de barreiras e percalços, nos perderíamos?  Ou nos adivinhamos demais quando acordávamos juntos. Ou talvez o temor de que nos roubassem de alguma forma o que transbordou de nós.

Não creio em sentimentos mornos. Amor é para ser exemplificado e suntuosamente, explicitamente mostrado. E tudo vira poesia e deixo em meus poemas a infinitude para te descobrires. Aí, até concordo, decerto dirás, não adianta só escrever o que produz o imaginário. Entregar-se e viver a poesia é que daria alma a ela. Intenção e verdade. Por isso já quis te poupar da minha covardia muitas vezes. Ao mesmo tempo não te deixo ir e te peço perdão por isso.

Mas preciso que saibas: imaginar-me não te sentir é o mesmo que me ver retalhada. Somente nossas solitudes são completas.

Se puder, por tudo que ainda há, escreva.

Desde sempre, Vania Clares

CARTAS ATEMPORAIS TRÊS




Caro poeta  amigo,

do poema que eu te mandei, o Voo dos Anos, hoje a impressão dele se completou inteira. Ficou no ar, nas entrelinhas, o que deixamos de contar. Por isso te escrevo. Aproveito agora, é quase de manhã e porque ainda preciso que saibas. Sempre é tão difícil falar e deixo nos porões não só o passado, como também o que perco,  as oportunidades. Não aprendi. Quando repasso o filme, percebo o que não atentei no momento.

Percebo agora com clareza a nossa fragilidade, a sensível aparência de colocarmos sempre a emoção à tona, à frente comandando as nossas ações. De tudo que relembramos da juventude, ainda conservamos a atitude vã de assumir os pecados do mundo, de carregar tantas culpas injustamente. Amigo, somos tão parecidos, tão infinitamente integrados, inteirados a sentimentos, poucos se identificariam. A nossa necessidade tão visível, às vezes assusta e afasta as pessoas. Mas não é solidão o que sufoca, é o não feito. Até nos confortamos com a solidão, como um ajuste a ser feito sempre. Mas há a sensação de pouco tempo. Ou será porque queremos algo mais dessa louca corrida.  O tempo. O implacável cobrador. Ao menino, acrescentou prematuros cabelos brancos, o receio de sorrir, olhos tristes, o medo de ferir. À menina foi dado o mesmo medo. Mas a própria natureza a fez mais prática. No milagre da vida lhe rompem as entranhas e mesmo com fome seus seios alimentam. Tão sublime e tão cruel, tão poético e tão real, incoerente.  Reage diferente, sorri e esconde as lágrimas, emerge na roda viva e agarra-se em seus próprios argumentos para sobreviver. Mas conseguimos apesar de tudo, enfrentar nossas escolhas com muita fibra, eu sinto.

Vejo-te agora, depois de explodir teu nome na memória, num repente um banco de praça, a pureza, inevitável lembrança. Como é bom termos tanto para lembrar e gostar, é como possuir tesouros sem ter que explicar muito.  Posso dizer, foi muito bom te reencontrar. Mas se meu impulso maculou algum sonho bonito ou deturpou a imagem de cabelos ao vento, perdoa-me.  Não quero te fazer mal. Quero antes de tudo ser tua amiga e te peço: não deixes mais que a dor te envolva, não contribuas para teu tempo ser menor. E escreve tudo. Leia-se e encontre-se nas palavras.  Porque precisamos, apesar das pedradas e tantos tombos, viver, com humildade e força para recomeçar. Viver, e mesmo na presença do desamor ter alguma coisa a dar. Somos ricos em sensibilidade e acolhida. Viver te peço, pois ainda resta uma brisa na noite e um gesto de carinho a nossa espera.

Desde sempre, Vania Clares

domingo, 21 de junho de 2020

SEJAMOS



Sejamos sempre breves,
sem transbordar mágoas
no choque do olhar.
Breves como as pétalas
murchas caídas agora,
das flores inertes n’água
(já embelezaram o dia
e retiram-se encurvadas)
Sejamos sempre breves
sem aprofundar raízes,
sem desenterrar desejos,
sem se fazer muito amar,
sem querer muito gritar.
Sejamos,
pois breve
é o tempo da partida,
é o tempo da estadia
e tão breve
é o tempo de nascer.

LEMBRANÇA




O tempo pode assumir sua tarefa,
a madeira ser devorada
vagarosamente pelos cupins,
os tijolos vendidos ou espedaçados,
os cabelos das pessoas mudarem,
os rostos tornarem-se cheios de marcas.
Nada apaga a lembrança
que às vezes chega cruelmente
tão coberta de mágoa
ou quem sabe com tantas cobranças.
Ainda sinto aquela menina
debruçada na janela,
sonhando em voar nas estrelas.


sábado, 20 de junho de 2020

INCONSISTÊNCIAS



Que o tempo do plantio
não proceda ao germe vão,
que o tempo do estio
não seja o da sequidão.
Houve o tempo da escolha.
O fruto é o cedido da vida, 
o desenlace da recolha.
Deem-me céus a valia ida
a quereres plenos e sentidos
vitais como o ar que respiro.
Pois em ensejos emergidos
do mais desmedido que aspiro
ainda a benquerença persiste.
Resgata-me ilesa na noite
e anuvia a dor que subsiste
sem razão para tanta ânsia.
Deem-me céus a constância
para que só o amor me habite.
Afastem esse afligimento insano
do que projeto além do humano.


sexta-feira, 19 de junho de 2020

TEMPO?



Teremos tempo?
O que é o tempo
senão uma incógnita.
Quando o desejamos extenso,
retemos obstinados a nossa história,
numa constância de memória.
Quiséramos desconhecê-lo
ao olhar sem ver.
Quem sabe amanhã
haverá a coragem
e o defrontaremos sem reservas.
Ora tentamos segurá-lo
implorando o eterno,
ora pensamos apressá-lo,
quando ele impiedoso
lateja os minutos,
na nossa ânsia de chegar.
Teremos tempo?
O que é o tempo,
senão uma sucessão
de placentas se rompendo,
marcando assim sua continuidade,
num paradoxo entre a dor e a beleza.
O imprevisível, o inesperado,
o indeterminado, o abstrato.
No entanto gera querência
esse mágico tempo,
urge de vida.
Simples concessão dos deuses.



DESAPEGO



Espalhas teus rabiscos
de palavras sem nexo
desperdiçadas
nas mesas, reflexo
vão, falas avariadas,
absorções de parcos risos
dos bares nefastos

Teu discurso fará eco
nas bocas que sequer aguçam
o desejo no lábio seco

Que toquem os venais
a superfície efêmera,
esvai teus carnais
anseios e reverbera
o dissolvido, o recolhido
pela noite bêbada.

O que não busca tua essência
compraz-te, doloso engano.
No amanhã ditas reticência
perante o simples cotidiano,
possuis a folha e o bico da pena
dadivosos ao teu alcance

Rascunhas continuamente
a tua história, e num relance
te dispersas levianamente.
Funesta escolha sorvida,
aceitando que transcorra a vida
sem teu gozo, nula existência

Deixo-te ao teu sol
se for esse o que te doura