sexta-feira, 26 de setembro de 2014

APELO


Chuva
de pingo grosso,
forte,que faz barulho
nas telhas,
nas calhas,
abafa as vozes,
a música,
exala um cheiro,
escurece,
arrasta a areia,
os papéis, o lixo,
engrandece os mares.
Impiedosa rasga as folhas,
verga as plantas,
desaba os postes,
destrói os barracos,
ensopa as almas,
lota os ônibus,
fede os cachorros,
pressiona miseráveis,
entope os esgotos,
os ouvidos.
Caridosa fecunda a terra,
sacia os frutos,
refresca os narizes,
os ares.
Limpa, arrasta,
leva essa dor
que me arrasta,
me entope, me inunda,
aperta, espanta gentes,
me transforma.
Leva, refresca,
arrasta, me fecunda,
me sacia, me lava,
me livra, me limpa


DO PARAPEITO VITAL

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

ALQUIMISTA


Agora ressurgi
das paredes espessas
da minha placenta
e já não me inibe
o cordão umbilical.
Cheio de coragem e ânsia
percorri o mundo
Feri, me feri,
armazenei dores,
tentei alegrias,
desci ao fundo do poço
tantas vezes
e tantas  me resgatei.
Talvez o bastante para saber
que o risco continua
e a magia de cada instante
permanece ao alcance
da nossa percepção.
Volto ao ventre
e recolho o tesouro
reservado desde sempre
no parapeito da minha janela.
Fortalece-me a lembrança
da água morna na pele
e a luz que inebriou os olhos.
Alimento-me ainda
pelo cordão invisível
de onde tu,  imutavelmente,
transfere-me a vida.
E humilde me resigno
à emoção sempre clara
que a cada toque me invade.
Agora rompi as paredes,
as paredes visguentas
da minha placenta
e curvo-me de agradecimento
a tudo o que já foi.
Não me limito mais.
Mesmo sendo dependente
do que partilharemos
em nossos dias.
Sonho ainda.
E a isto não renuncio.
Estou pronta.





segunda-feira, 1 de setembro de 2014

RETRATO





O espelho zombeteiro
todas as manhãs
me lembra ontens
e  sonhos tombados.
As notícias cotidianas
me apressam.
Na consciência de partícula efêmera,
aberta para qualquer destino,
aflige o peso da palavra calada
e do ensaio em que me deixo.
Não fui feita para a superfície de nada.
E, no entanto, me perco, me embaraço
em buscas e tantos rascunhos,
tentando decifrar
a pose distorcida
de um retrato antigo e gasto
de mim mesma
(tão banal e parecido com outros)
misturado à confusão da gaveta.



DO PARAPEITO VITAL