quarta-feira, 29 de julho de 2020

AMIGO IRMÃO



Antes de outras emoções,
antes das ausências na luta pela sobrevivência,
antes que nos determinemos a calar
e fique a intuição a nos guiar,
antes de outras andanças,
de outras partidas, de novos começos,
antes que termine o milênio
e voemos para outras dimensões,
também para que te encontres
assim, de surpresa, em minhas palavras,
imprescindível reafirmar, registrar.
Ou tentar ao menos, visto que intensidades
às vezes são inexplicáveis, somente sentidas,
quando palavras ainda ficam a dever
diante do que é o encontro.
Sem coincidências, sem acasos.
Para que nunca te esqueças
de que jamais estaremos sós,
nesta ou em outras passagens.
Muito ainda nos misturaremos nas noites,
brindados pelos serafins com inspiração e esperança.
Conviver quase parece um fardo
imposto por algozes,
 nos violentamos com a violência,
com tanta desigualdade e pobreza,
às nossas margens crescem os males,
como se de outra raça surgissem
(ou seremos nós?).
Nos misturaremos nos rostos das crianças,
ao imaginarmos amanhãs mais orvalhados,
quando levitamos e as estrelas
nos deixam quase infinitos.
Permaneces em mim como um abraço.
Afago de mãe no medo do escuro.
Silêncio de amanhecer. De paz.
Faço nossas as lembranças
assim como nossas vitórias,
choramos juntos todas as dores,
rimos um riso de alegria.
Estás em mim.  Porque alguns laços
não dependem de tempo e distância.
Nos sabemos num olhar
como um irmão sabe do outro.
Nos sabemos na saudade.
Nos sabemos apenas.  Em cumplicidade.
Porque vejo em ti a centelha divina
de um Cristo menino
a transparecer no teu gesto.
Também me vejo em ti
quando te toma a emoção
e te colocas virginalmente perante a vida.
E porque não escondes nos olhos o brilho, confio.
Confio no frutificar da semente.
Da semente que matura e se espalha,
de um tempo
em que todos se reconhecerão.
Por isso quando te reconheço e te chamo
amigo
sabe, estamos juntos e somos parte vital
de um tempo maior,
o tempo do amor.





segunda-feira, 27 de julho de 2020

CUMPLICIDADE



Louca sei que sou,
tentando insistente
 passar a limpo rascunhos
durante séculos esboçados,
como se a vida transcorresse
sempre em contínuo retoque. 
Errante sei  que vou,
Buscando  entre atalhos
o palco livre e aberto
 para o melhor ato criado;
que a visão clara
me salve ou fulmine. 
Atenta sei que estou,
ousando enfim inventar
a palavra perfeita,
que defina a poesia
 percorrendo impunemente as veias,
traçando imprudente o rumo
da minha normalidade.
 E, num arremesso à solidão,
 quanto mais atenta, louca e errante,
mais banida me faço. 
Somente inteirada, cúmplice,
da ebulição das margens
que indesejáveis
e incontroláveis crescem.

Do livro
DO PARAPEITO VITAL

EM TI



Arrebata-me o êxtase.
Não indaga explicações
e não esperes a síntese
nem precipites deduções.
Mantenha o silêncio
ou simplesmente
conecta-te às vibrações
que de mim sublimam
e por escolha emanam.
Aqui intuitivamente
fecha os olhos, delineia
o oráculo de Delfos,
apura o que desencadeia
o turbilhão dos desabafos
e que o teu centro clareia.
Observa, introspecta-te,
do pão ázimo alimenta-te.
Abandona o excesso
colhido nas ilusões.
Escuta o que professo.
Somente em ti a anima
da vida, a fonte da poesia.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

SUSSURRO DA VIDA


O SER POETA



Fascinante como funciona a ideia subjetiva do ser poeta!
Faz suas as dores do mundo. Antes de si, o outro.
O uno como parte do todo, a comunhão 
que tanto se propaga, se almeja, se vivencia. 
O uno que não existe sem o outro. Repleto de compaixão recusa-se a sentir enquanto não absorver o que lhe rodeia, enquanto não triturar a pedra e devolver cristal.
Ele não é o centro. É o que contém, o que matura, o que abrange, o que devolve, o que aparentemente pretensioso se isola às vezes para não ferir (aguardem, 
vou processar e transmutar a dor, ressuscito talvez nas palavras,ou me suicido quem sabe
o que recolhe todo o objetivo coletivo e faz dele o subjetivo.
E enquanto o eu se manifesta,
vários eus compartilham o pensamento:  
“Eu sou, como nós somos”...
Eu deixei-me transparente cordão,
o mesmo que desde embrião
me une a todos.
Eu, a primeira pessoa
contendo consentidamente
– tu, eles, nós”

quarta-feira, 22 de julho de 2020

REDENÇÃO



A gente pensa
que nunca mais.
Tudo está estático
e resolvido
para sempre. 
Dormimos então.
Até que mansamente
ou no tempo certo,
num sussurro
ou num abraço,
a fênix grandiosa
que existe em nós
ressurge viva e plena.
Nada será mero
ou parecido
depois disso.
Os olhos sorriem
de forma semelhante,
como semelhantes
os pensamentos,
os sentidos,
os amanheceres.
Ainda amamos
e cremos na vida,
alçamos voos
com a direção
do melhor
de nós mesmos
e com a proteção
de toda luz.
Há respostas.
Regeneramos.
Rejuvenescemos !

terça-feira, 21 de julho de 2020

INSTRUMENTO



Que se prepare a alma
quando surgir o arrepio
e recepcione a palavra
com a ferocidade do cio.
E nunca serão poucos
os arrepios, nem as palavras
tendo a ciência do peso
do que ora fere, ora atenua,
ora emociona, ora escancara,
a verdade mais intrínseca
no verso mais explícito
com a vibração de acordes
com a leveza de asas
ou vendaval que arrasta.
Que se deixe despejar
para depois lapidar
e quem sabe rimar.
Que se doem generosas
e levitem pródigas
por sobre todas as sombras.
Há que não se importar
que o outro as entenda para si
como bálsamo ou propulsor
e sirva-se farto da submissão
humildade e a razão do poeta.
Mas antes das sentenças
há de haver a poesia destilada,
para que os elos calcifiquem-se
na intenção do que se agrega.
No dever da escrita a libertação
dos grilhões da ignorância.
Que entendam seu alívio de sentir
como intentos de arremessos de paz
e sua forma extremada de amar.

DESCOBERTA DA ESCRITA



Era criança mirrada de doze anos
e gaguejava muitas vezes ao falar,
introspectiva, não causando danos
mas não acertando como se igualar.
Aparentemente só e apática
devorava interessada os livros
como se dependesse na prática
buscar para si o viço, os parâmetros.
Para enfrentar a humilde vida
e entender as dores da existência
isolava-se do mundo protegida
pela ilusão da sua transparência.
Foi chamada na sala de aula
para explanar algo sobre o livro.
Quis explicar: dele sou discípula
é o amigo que se doa sem crivo.
Destoou do alheio entendimento.
Simplesmente riram debochadas
causando-lhe bochechas coradas.
A mãe: que constrangimento,
precisa aprender a falar menina!
Acabrunhada diante de tal impasse
mas já dotada de arte feminina
magnetizou o que acaso lhe atentasse.
Armou-se de coragem lápis e caderno
foi até a janela e absorveu, observou.
Desbravando no outro seu interno
descobriu-se intérprete, não mais calou.
Transcrevendo as essências, tudo falou.

sábado, 18 de julho de 2020

METAMORFOSE



Na luz do ocaso retenho
do dia o resquício
das indagações contidas
das mudezes compelidas
do tanto desperdício.
No corpo mantenho
retalhos de cores
fragmentos de dores
acúmulo de pudores.
Reservamos para quando
a vida que urge, as sentenças
nas incertezas do tempo
impedindo presenças
impelindo ao lamento?
Armazeno, reciclo tudo cultuando.
Aguardo as manhãs luzidias
que raiarão imperiosas e intensas
por sobre todas as coisas.
Acato desejos fugidios
preencho pensares vazios
abraço rumores vadios.
Largo-me sem rumo aos ciclos,
na mescla da noite os estímulos.
Confundem-se céleres
e misturam-se em simetria
embriaguez e cárceres,
em leveza e dismetria,
na ânsia e complacência,
no torpor e veemência
em revolta e aceitação
em animo e confusão.
Invade-me a luminescência.
Cumpro-me acolhimento
consinto-me sementeira,
escora, farol, avivamento.
adubo, vindima, alimento.
Reúso o que sorrateira
recolho do que concede.
Diluo em poesia a essência
o que da luz de todos excede.


segunda-feira, 13 de julho de 2020

À BEIRA DO XEOL


Em constante defesa de preservação
converto a revolta em força.
Lateja na cabeça a mesma tecla gasta
enquanto modelo o que absorvo.
Como um rato em cela de laboratório
numa programação insana e inútil
rodo desesperadamente em círculos.
Não me cabe mais o que recolho
- fica o reconhecimento de luz -
não mais comporto o que assimilo
- despejo num sorriso de compaixão -
Ah, como eu queria de longe observar
a atuação dos tiranos e dos pobres...
Perdoo-os sim, menos a mim mesma.
De que me ajuda situá-los
num mundo vasto,
pródigo de ínfimos valores?
De que me adianta o êxodo
de minhas crenças, de meus desejos?
Quem me dita o sacro-ofício de servir?
Quem me dita fingir que aprendo
esse jogo incoincidente e vil?
Socorre-me Espírito,
unta-me com óleo sagrado
para que eu possa me arrastar
por entre lanças sem sangrar.
Dá-me o entendimento, a remissão,
tenho as duas faces e o coração feridos.
Pois que aumenta mais
a minha máxima culpa
de participar, de estar, de pactuar
com tanta miséria humana.