sábado, 31 de outubro de 2020

QUE MAIS PRECISO?


 

NOITE DAS BRUXAS


 

 Um truque

ou um doce

do teu riso,

hálito promessa

de abraço abandono:

magnético risco.

Um doce

ou um truque

da minha cara,

disforme distorcida

da ausente lágrima:

reflexo reverso.

Sou truque,

és doce.

Lodoso poço

ou farta fonte.

Sou bruxa,

és noite.

Um truque

ou um doce.


EPITÁFIO


 

Foi de encontro

à noite de vez,

plena de vida

emoldurada de luz.

Desligou-se

da efemeridade

para reconhecer

a eternidade.

Encantou-se

em delicadeza

e sororidade,

levou pelas mãos

as irmãs agregadas

pela poesia.

Seu rastro denso

gera frutos

parindo palavras

e murmúrios

instintivos,

acalentadores.

Junto a suas iguais

habita estrelas

de um universo

desenganado e falho.

Reteve em si

a glória da gênese

e a têmpera agoniada

dos instantes.

No risco abalável

seu máximo invento:

amar sem medidas.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

MISTÉRIO

 

        O pai sempre levava para o seu lazer, revistas em quadrinhos. Tudo bem se não fossem de terror.  A criança de sete anos lia tudo o que aparecia à sua frente, inclusive gibis. À noite, não raramente, a menina cobria a cabeça para não olhar o breu e as janelas altas do quarto.

        Certa noite levantou-se para beber água, muito apreensiva. Para ir à cozinha teria que atravessar a sala da casa antiga. O assoalho rangeu ecoando até o teto alto e os móveis escuros, pesados, acentuavam a austeridade. O ambiente só se alegrava aos domingos, quando a avó recebia a família, muitas crianças invadindo os corredores, porões, tios que gargalhavam e tias que papeavam na cozinha.

        Pois bem, nessa noite marcante na vida da menina, assim que adentrou a sala, gritou estridentemente assustando a todos. Apontava para o centro afirmando ter visto um homem, com roupas marrom claro, de botinas sujas de terra e de chapéu. O avô correu pegar uma arma e ele, a avó, a mãe e o pai procuraram por todos os cômodos o possível invasor. Mas nenhum sinal de porta arrombada foi notado, deduziram tratar-se de um pesadelo da coitadinha, crianças são frágeis, provavelmente ficou impressionada pelas leituras indevidas.

        No dia seguinte, a menina, dotada de imaginação, ainda contou que sabia de onde ele tinha vindo. Afirmou com muita certeza que já havia estado no sítio onde no meio de muito mato reinava uma casinha simples e de paredes gastas, com uma fraca luz amarela iluminando. Descrevia em detalhes a chegada por uma estrada de onde se avistava essa paisagem. E só gritou pela surpresa e susto.  A avó até riu, a descrição caberia bem nas paragens dos seus antepassados, mas não comentou, afinal fazia tanto tempo que tudo aquilo acabara e talvez nas conversas domingueiras tivessem dissertado velhos tempos.

        Foram sete dias de febre intensa, quando a menina silenciava por longas horas e se falava era para lembrar-se da visita. Aos poucos os adultos não mais quiseram tocar no assunto nem entre eles, e disfarçavam quando a menina queria contar de novo a aparição.

        O fato é que, curiosamente, no dia seguinte ao ocorrido, a mãe a entrar na sala encontrou marcas de terra no lugar onde supostamente esteve o homem, só ali. Mais curiosamente ainda é que a menina depois disso perdeu o medo. Trocou o dia pela noite e muitas vezes foi pega perambulando tal sonâmbula parecendo até sussurrar e anotando coisas num inseparável caderninho.  Com o que se acostumaram.  Todos concordaram que era melhor esquecer o que não tem explicação.

    

sábado, 24 de outubro de 2020

AMANHÃ


 

Quero abraçar de vez

minha insanidade.

Vagar pelo concreto da noite,

beber de lábios meninos,

aliciar-me a virgens manhãs,

despojar-me da máscara,

do invento da hipocrisia,

adulterar os rumos,

transpor o medo

de ousar transparências.

À euforia da minha dor adentrar,

absorver soltos versos,

extasiar-me louca,

quando o fruto

desprender maduro

das minhas entranhas.

Hei de entregar-me ainda,

cúmplice que sou

do que paira absoluto.

Ainda que perdure impiedoso

o formigar dos sentidos,

a paralisação da memória

e enquanto bastar somente

essa vontade de palavras,

a limitar o tangível,

a desejada definição

de viver poesia.


DEFINIÇÃO


 

Aparentemente na superfície,

olhando sem ver seus corpos matéria,

além de pensamentos,

recolho os excessos,

energias emanadas de cada um.

Deixaram-me o raptor

do que desconhecem, cegos,

e do que desperdiçam, tolos.

Ditaram-me triturar diamantes,

traduzir em palavras alimento,

tudo o que paira

no limiar cristalino

e que une a minha divagação

à normalidade do mundo.

Dizem-me poeta.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

AUTÓGENOS E EXÓGENOS POETAS


Duais conscientes

levitando em produtos

colhidos e armazenados,

assumidamente loucos.

Desatinados sem culpas

a exibirem escancaradas

impressões e rastros.

Enquanto o poeta devaneia

os pseudo detentores

da lucidez detonam

essências primordiais.

Que se outorgue o prazer

na loucura destemida

dos ousados que se excedem

derramados em versos.

Utópica forma de permissão

do sentir com intensidade,

farta entrega intuitiva

sem averbação da razão.

Um mundo inventivo

onde vaga na felicidade

legítima e admissível

em legado e desapego.

Imprudente é aquele

que define o equilíbrio

apontando-o como alienado

e único desarrazoado.

Desprovidos de sensatez?

Armados de palavras?

Quem diz da normalidade

contrapondo-se à insanidade?

Que prevaleçam os poetas

nas suas quiméricas loucuras! 

MEU MUNDO


 

Se eu te amo ainda?

Fiz dos meus dias

santuários de saudade

onde às vezes me farto.

Cerco-me e apego-me

às nossas coisas,

dos esboços, desenhos,

de cartas delicadas.

Que me amparem

as palavras gravadas.

E no colo da tua alma

que pressente

e me abraça, me deito

e regenero.

Percorro alamedas

como se escutasse

ainda teus passos

e o nosso riso ecoa

e energiza

o vinho na taça.

Deixo paralisado,

retido nos olhos

esquecido, ignorado,

o adeus não dado.

Porque encantada,

dividida, suspensa,

permanece a vida

ausente de estreiteza.

Se eu te amo ainda?

Meu mundo resume-se

ao tempo de espera.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

VIVENTE


 

Ele não diz ou quase

Esconde-se atrás do verso

Atrás da folha

Do pensamento

Quando as fomes

Misturam-se

As do corpo e a da alma

Vem em socorro

A palavra

Seta lança da entrega

Espreitando

Internos, nortes

Sinais

Toda ânsia

Recepcionando

Luzes de luas

Agregados sóis

Verdes cheiros

Salvante

Vivente

Doando-se

À intrínseca vida

Entre margens e beiras

Ele não diz ou quase

Mas anoitece

E amanhece

O poeta

Em poesia


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

ENQUANTO POETA


 

Um estado além de.

Transcendendo

as emoções,

a dor e alegria,

meras expressões.

Com a mesma lágrima

e o mesmo riso,

ignora os sentidos,

o tato, o fato,

o peito ofegante.

Camufla as setas,

esconde o brilho

transpondo

delimitadas linhas,

invisíveis sinais.

Absorvendo

faróis aparentes,

luzeiros na noite,

catalisador,

concede impressões

entregue e só.

Disposta fatalidade,

intensidade igual

para tudo sentir.

Absoluto

na propriedade

de somente sentir.

No posto ilhado

observa a vida

que vem e vai

e assim compõe,

sempre o mesmo

retrato inflamado

de um estado

além de.

Dele mesmo.

sábado, 17 de outubro de 2020

ADVERSOS


 

Quase sempre encantado

asilava-se inerte na escuridão,

desarvorava a cabeça calado

derrotado pela lassidão.

Quase sempre sussurrava,

engolia palavras  em avalanche,

suas e dos outros e as guardava

para no despejo a revanche.

Nas linhas, nós embaralhados.

A tempo mirou-se desvairado

quando deslumbrou atalhos

do que pressentia pactuado.

Quem há de saber o início

se no cérebro ou no peito

do tanto colhido o resquício.

No desjeito o imperfeito?

Nos discriminados e retalhados,

na acolhida dos discrepantes,

na transparência dos açoitados,

descobriu seus semelhantes.

domingo, 11 de outubro de 2020

EVOLUÇÃO


 

Os homens criaram mitos

para o que ainda se ignora.

Do caos ao cosmos,

nada vem do nada

e nada volta ao nada,

apenas diziam.

Atribuíram a Physis

à água, ao ar, ao infinito,

onde tudo se cria

e se transforma, infinitamente.

Os bem pagos dominaram

a retórica e a oratória

até o sábio propagar

infindáveis indagações.

Ele, mesmo sabendo  

que uma  vida irrefletida

não valia a pena ser vivida,

mesmo assim confessou

humildemente nada saber.

O revolucionário esbarra

na essência das coisas e decreta:

a verdade está no mundo

à nossa volta. Viva a ética,

a lógica, a moral, a metafísica!

Logo a necessidade urgente

para se encontrar o equilíbrio

entre a razão e a fé,

na arte fazer valer o amor,

os seres impondo aos seres

a convivência entre os iguais

e a aceitação das diferenças.

Todos ainda buscando o Bom,

O Bem, o Belo e o Justo.

Nas suas polis e psiques

por séculos e séculos,

guerras e declarações,

descobertas e invenções,

capitalismo selvagem,

muros, pestes, destruições,

fome e bombas de hidrogênio.

A razão se adapta

ao mundo dos sentidos

e o homem ainda é marionete

das suas próprias convenções

entre a liberdade e o poder.

Da evolução do mito

às sombras das cavernas,

na divina comédia

das tentativas universais

de se obrigar e fazer valer

os direitos humanos,

ainda imperam as perguntas:

quem eu sou e o que faço aqui?

De onde vim, para onde vou?

O que ainda restará para sonhar

a nossa vã filosofia?