sexta-feira, 30 de abril de 2021

DESPRENDIMENTO


 

Fica na reminiscência a perpetuidade

do denso líquido amniótico escorrido,

após o corte brusco da cumplicidade

no meio do cordão umbilical contido.

 

Ficam espalhadas as nossas palavras.

Não nos pertencem, desobrigam-se

tão desembaraçadas, alvissareiras.

Enquanto enlaçadas voam, tecem-se.

 

Vida! Conceda-me coragem e atalhos

em mim mesma, para a compreensão

do que se renova entre os frangalhos,

nos magníficos artifícios do coração.


sexta-feira, 23 de abril de 2021

APRENDIZADO


 


Sem comprovação empírica

sem lógica que a satisfaça,

na ideia pensada e telúrica

há toda energia que enlaça.

 

Sem razão que argumente

na atenta sede do querer,

sem motivo que sustente

há só caminhos a percorrer.

 

Por mais que decorra o tempo,

que não se encerre a vontade

e não se resuma em tormento,

o que se dilui em prolixidade.

 

Que seja indagação incansável

o que se recebe como verdade,

remete-nos ao imponderável

onde não cabe a subjetividade.

 

Abre-te à imensidão da sapiência,

tritura sem provocar confronto,

não te arrisques na prepotência,

na postura de quem está pronto.

 

Que seja insaciável a tua busca

daquilo que a ti ocasiona sentido

e a tua transparência não ofusca.

Repensa também o já refletido.

 

Que não seja em aviltamento a troca

do que foi a ti em benção permitido,

com humildade e reverência enfoca

reparta com o teu irmão o aprendido.

 

Nos livros pousam todas as vivências,

toda a pródiga  e magnífica imaginação

dos que consagram suas existências

a cultivarem relicários de germinação.

 

Na memória dos homens a história,

na tua o absorvido, o pensamento.

O que vem depois é lei meritória,

amplia com ânsia o conhecimento.


sexta-feira, 16 de abril de 2021

REALIDADES


 

Quando me vejo sujeito

e objeto experimental,

ao sabor da causa e efeito

do fútil valor aparental,

conformada e submissa

a absurda vontade geral,

não me posiciono omissa

encerrada em um contexto

onde a consciência carece

não argumentar pretexto

e encarar o que ensandece.

Inteirada do que me margeia

e exigido ser ativa reflexiva,

então escolho ficar alheia

ao que me rodeia, à deriva

(o divino mundo das ideias

é tão perfeito, lá consigo

vislumbrar essências).

Na poesia encontro abrigo

quando cruéis me atingem

vergonhosas realidades.

Ordeno-me a ter coragem

atônita em perplexidades.

Mas a fé tenho que reforçar

de que ainda terá salvação

(se muito me esperançar)

o ser humano. Turvação.


quarta-feira, 14 de abril de 2021

NESTES DIAS


 

Dividido está o coração

entre aflição e saudade.

Entre espera e vibração

penso perder a sanidade.

Mas nada afasta a certeza

do amor neste momento.

Temos muito para viver.

Sustenta-nos o acalento

da lembrança, a revolver

tesouros que guardamos

para sempre. Na esperança

e na fé, transbordamos

o amor, é nossa aliança!

quarta-feira, 7 de abril de 2021

ODE À VIDA


 

Em reverência ao que em jorro se derrama,

desarmada de enviesadas forças opostas,

o que sinto esvanecer-se em solene trama

habita em infinitos espelhos e respostas.

 

Ao que me foi concedido imérito na graça,

contestando a fatalidade da transgressão,

ao que às vezes cruelmente me embaraça

e verte lágrimas disfarçadas na expressão.

 

Ao que nas noites me estremece e me assola

como se recuperar o tangível fosse possível,

ao que só em mim se reinventa, se desdobra,

na ânsia de acolher o que vem, o imprevisível.

 

Enquanto houver o farto sopro do milagre

em tudo o que me é sagrado e santificado,

sublimo entre os homens o que consagre

apartado dos perversos, o bem enraizado.

 

Ao que avassala em corrente reverberante

e me faz minúscula diante da sua grandeza,

exalto aquele que me revigora inflamante,

o deslumbre, na paz das crianças a pureza.

 

Ao silêncio das preces, os versos murmurados,

implorados com fé aos pés do Cristo, contrita.

Porque será sempre de mistérios inexplicados

onde profecia a morte, a sorte jamais descrita.

 

E quando me absorvem os disparates alheios

reciclo dentro de mim o desamor em perdão,

envolvo de chama o que se esparrama em veios,

ao ríspido, transfiro o lumiar da compaixão.

  

Por escolha tento desvendar o incompreensível,

o desatino entre ocultar nas entrelinhas a dor

e partilhar na palavra em poesia, o invencível.

Por amor à vida careço viver na doação do amor.


RODOPIOS


 

Eu me copio

religiosamente.

Canso, arrepio.

Até me confundo,

invento ou é fato?

Eu me imito

verdadeiramente,

recurso pragmático?

Pareço, no entanto,

voar em círculos.

E nesse denso éter,

o fruto constante

resulta em variados

esboços emaranhados,

dos que se misturam

no meu rastro de asas.

Arrasto, cabalmente

condenso, saturo.

Do que penso tanto

copio-me, imito-me,

mas albergo, preservo

os que me percorrem,

os que me apreendem.

Corporifico, rodopio

nas impressões,

impregno-me.

Acumulo rascunhos

repito emoções.

Até penso que existo.


sábado, 3 de abril de 2021

AUTOCRUCIFICAÇÃO


 

Um homem derrama grãos

pelas escadas do templo,

mistura-se aos pagãos.

Estanca no degrau amplo

onde também cabe Judas

e além dele, muitas divisas.

Nas faces úmidas desnudas

tremulam lágrimas tensas.

Enquanto recebe o beijo

tilintam as trinta moedas,

escuta também o regozijo

dos brutos em suas quedas,

e perdoa os falsos que pregam

e o coroam rei dos vermes.

Gritam em cólera e subjugam

exibindo mentes disformes.

(Nos presentes judas as promessas

ludibriando humilhados pobres,

submetendo ao poder as massas

de seres escravizados, milhares.

Os cascos estalam no asfalto,

jazem meninos aos jorros,

mães de mãos calejadas ao alto

imploram da justiça o socorro).

Escorre sangue entre espinhos

enquanto o silêncio vela a morte.

Estarrecido entre os daninhos

busca o salvamento que exorte,

algum sentido que justifique

a violência diante da equidade,

se ainda há algo que dignifique

os que vislumbram a unidade.

Proclama-se lírico o deus homem.

Faz do grão palavra que floresce

curando as dores que oprimem.

Milagrosamente todo dia ele renasce

e avisa, ainda é tempo de plantio,

ainda é tempo de estender as mãos.


quinta-feira, 1 de abril de 2021

ACERTOS


 

Quando me vi farol brilhando

na escuridão soturna do mar,

quando a relva ressecando

intimou o essencial orvalhar

e uma nuvem encobriu pesada

a claridade da lua antes cheia,

quando me amordacei defasada

em concessões, o fel em cadeia

escorreu dolorido na garganta.

Quando constatei reles moedas

de troca, no que  desencanta

a disparidade das concedidas,

quando não provocou ressonância

o carinho despendido em emoção,

somente a poesia em abundância

em socorro regenerou o coração.

Proferindo sussurros fragmentados

insisti inocente nos ouvidos surdos,

que ditados em verbos acidentados

converteram-se tão logo em fardos.

Quando restaram as palavras

escorrendo no limbo gosmento,

espalhando-se em metáforas

reduzidas a mero ressentimento,

a despedida desenrolou fatal.

Depois da certeza de ter feito

muito mais do que pedias, letal

jeito de remeter ao imperfeito.

Quando não me importei

em mostrar a face abatida

e inúmeras vezes inventei

até de forma ensandecida

ajeitar teu caminho ao meu lado,

quando esgotei meus argumentos

inutilmente havia acalentado

nossas sombras em desalentos

num gesto perdidamente solto.

Quando sobraram as diferenças

percebi de revés no olhar revolto,

melhor repensar minhas crenças.