domingo, 30 de agosto de 2020

ELOS


Prostrada na devoção

ora me enlevo

ora me desespero.

Quem somos sozinhos

em meio a multidões

sem histórias?

Retemos páginas viventes

e a esperança de outras

subentendidas nas palavras

e edificadas no olhar.

Retemos sensações viscerais

e o arrebatamento

perante o que poderia ser.

Ouvimos nosso pranto

e o carinho cingido,

torpor aquecendo a alma.

Que elo é esse que prende

sem amarras nem perguntas,

sem medidas nem cansaço?

Esgotamos argumentos,

tentativas que justifiquem

perdermo-nos à deriva.

Obedecemos a escolha

do pensamento extasiado

enquanto nos declara

o que pressagia o amor.

 

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

PORTAL IRRECUSÁVEL


A tua intenção deveras

decerto de amor enlevadas,

as tuas sucintas palavras

pelo carinho motivadas,

às vezes até pressinto

tal um grito, um pedido

de socorro, um labirinto

de compaixão invadido.

Para a notada sinceridade

do teu cristalino gesto,

vindo pela essencialidade,

acautelado e modesto,

há a resposta imediata

em mim, a regeneração.

Meu ser se agiganta, acata

reavivante êxtase de paixão.

Sedenta, ávida de noite,

a sonhos delirantes propensa,

levito, concedo-me o deleite,

o regalo, a entrega intensa.

O limiar escancarado

remete à luz, à divindade,

um mistério desanuviado

do sentir com sublimidade. 

terça-feira, 25 de agosto de 2020

SEMENTE

 

Obstinado tenciona a mente

e à toa empenha-se tanto

em parecer dormente.

Ao ouvir seu descanto

quase abafado silente,

cala, amansa o pranto.

Impassível rega a semente

amparada no acalanto.

E por mais que invente

esgueirar-se há o afeto santo

latejando vivo insistente,

imune ao desmanto

no que brilha, mormente

no que vem de alevanto,

mas que faz premente

o conforto de um manto.

Que de clemência o isente

e seja ouvido o precanto,

rendido obedeça ao deleite

onde tange, provoca espanto.

Que pleno sua alma aceite

onde há paz e graça, enquanto

o tempo cruel não enjeite

no amor bendito o encanto.

 


terça-feira, 18 de agosto de 2020

DAS LINHAS

 

Está tudo escrito?

No entanto amedronta

o caminho velado

No mais obscuro de nós

tantas são as linhas

visíveis onde soltamente

depositamos os sonhos

quando somente aponta

indícios que atraímos

até incoerentemente

do que intuímos, desejamos

fingimos ou ignoramos.

O que já está escrito certo

por várias linhas

demoradamente

condensa incrusta

acomoda acumula.

ou num estalo invade

irrompe desanuvia.

Resta o estado letárgico

espreitando o meio crucial

da coragem ou covardia:

a definição da escolha

A aceitação costumeira

ou o ousado trânsito

no arriscado voo

ao mistério do novo


segunda-feira, 10 de agosto de 2020

NA SOLIDÃO DOS EUS

 

Eu e mais eus,

atinados sutilmente

na laboração dos anos

na constatação mormente,

ausentes de danos.

A expectativa comprova

e anuncia a descoberta,

espreito voraz o que renova

e no meu âmago desperta.

Não haverá aquele que sacia

enquanto assombro provoca.

O meu silêncio denuncia,

perecerá o que sufoca.

Jamais no outro invadirá

o que só em mim conflita.

Do outro não cumulará

a voracidade que me habita

— Não deduzas, não bastará

o dedo em riste, não aponta

a inspiração que encontrará

na solidão qualquer afronta.

Porque não a sinto. Não solidão 

Perdão, não te subestimo.

De ti recolho as sobras

e as reinvento no íntimo

enquanto ditas as letras.

Eu e meus eus

integramo-nos nas noites

e digladiamos às vezes.

Surgem convergentes

lançando novos matizes

virgens e nus entre lucidezes.

Com mil facetas contornadas

devastam meus quereres.

Visto-os de essências serenadas

e nos comungamos absolutos.

No poema gerado em harmonia

surpreendem-nos os arautos:

mais um milagre ao raiar o dia!

 


domingo, 9 de agosto de 2020

FUNDAMENTO

 

O que gera boas palavras

e no exemplo induz soluções

sem figurar obrigações

O que gera alegrias

e com abraços concisos

desencadeia sorrisos

O que supera ausências

e humilde preenche espaços

sem cobrança e estardalhaços

O que mesmo fraco e pobre

conduz toneladas e é nobre

O que mesmo ignorante

discorre a ciência do universo

e confronta um afeto conexo

O que protege as sementes

lavra a terra, verte o sal

abdicando do enlevo do fruto

Um óvulo é fácil...

Primitivo, possível e animal

Ao fertilizar de amor o coração

aí sim se revela firmamento e chão

E quando se reconhece o pai


sábado, 8 de agosto de 2020

O MAIS DA INFÂNCIA

 

Referências as teve

Sem querer as absorveu

E chegaram assim,

Pelos tios, o avô,

E de tudo ficou um pouco

Do tio, cantando sempre

A mesma música italiana

e rindo alegremente

Juntando as crianças

Para uma volta de carro

Do avô a sisudez

O arrastar dos chinelos

No assoalho encerado

A sopa de feijão sorvida

O cachimbo enfumaçando

Os corredores

O afago no cachorro

As poucas palavras

A não ser no dia de Natal

Quando havia vinho tinto

E o amor dele transbordava

junto ao funil da multiplicação

A rotina seguida

Com retidão

E obediência

Se na casa recendesse

O sabonete do banho

O pai em casa, que lenitivo!

Na ausência,  a apreensão

Pelo que haveria

E também seria rotina

Depois do almoço

A menina fazia as tarefas

Da escola no parapeito

Da janela de madeira

Carcomida pelo tempo

O tempo também

Das suas ânsias

E inquietudes,

Ensimesmada

E já registrando

Os primeiros poemas

Às seis da tarde

As crianças se ajeitavam

Aos pés do avô

E do rádio que só podia

Ser ligado nessa hora

A Ave-Maria...

E ao soar dos sinos

Todos rezavam

Pelo silêncio

Do restante das horas


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

EM TEMPO

 

Ela coloria os rios,

montanhas e cordilheiras,

lia gramática francesa,

observava as constelações,

comia tomates com açúcar,

vestia a boneca de louça,

de amora manchava a roupa,

fugia de um beijo, corava,

calava e refletia.

Ela divagava no parapeito

da janela de uma casa

que nem dela era.

Não entrava nem saía,

nada sabia e tudo.

Das distâncias e diferenças,

dos homens e das prisões,

das terras ocas, das pedras

e dos passos seguintes.

Tudo soube e sempre.

O bastante para entender,

que o quanto se quis grande

é o tanto que se permite

agora ser criança.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

OLÉ MEU PAI


Aprendi muito cedo

a considerar a sobriedade

ao olhar nos olhos

e no tom da voz

das palavras despejadas

Aprendi com ele

que o silêncio nem sempre

significa calmaria

e de como se encobre

o turbilhão da raiva

e como se alavanca

tempestivas iras

Aprendi a anestesiar

para sobreviver

e que o corpo se move

às vezes como obedecendo

a uma programação imposta

não pensada e da vontade

Aprendi também

que às vezes é mais do que preciso

obedecer à interna sina

e liberar a fantasia que sabes

ser a tua própria real e sentida

E como vale também o direito

de desejar a alegria e dançar

o ritmo que te lembra de vida

Aprendi que o amor

não requer grandes feitos

nem sequer constantes gestos

Na cumplicidade de um olhar

pode se resumir o orgulho

e a gratidão pelo que timidamente

não se ousa vangloriar

Ele não sabia dizer

mas trazia nos ombros

caixas com frutas e peixes

e caranguejos vivos

vermelhos como seu rosto

castigado de gelo e sol

E um dia chegou

com um lobinho de borracha

colorido e de assobio

que durou até derreter

Ele nem sabia dizer

mas quis me ensinar os passos

de um tango rasgado

e carregava na carteira

uma foto amarrotada

Quase sem querer falava

filha te amo