quarta-feira, 31 de março de 2021

NUNCA MAIS


 

Inevitável não enveredar pela dor,

enquanto gritos atordoam, latejam.

Vem à tona o agouro do terror,

vidas ceifadas, mães que rastejam

despejando lágrimas de porquês.

Cala-me  ainda um tempo que ronda,

remete aos cruéis mesmos enfoques

sem existir razão que responda.

A opressão dos ditadores na história

marcha contra a sublimidade do amor,

ocupa o flagelo cravejado na memória,

e todo rumor é recebido com temor.

Que resistam pertinazes nossas armas

não nos corrompa a impiedosa lança!

Mesmo carregando no peito estigmas

deixemos em tudo prevalecer a bonança,

empunhemos heroicamente a palavra.

Não ao assassino que espezinha projetos

do respeito à vida enquanto escalavra

de seus feitos diretrizes como dejetos.

Ressuscitemos com bravura a esperança,

não sucumba em nós o arrebatamento

da coragem que se alevanta e nos alcança.

Não aos que convencem pelo aviltamento!

Sobreviva o poder, a intenção renovadora

da poesia, guiando a ação pacificadora,

que vençam os homens de boa vontade

e nos cerque o desenredo da liberdade.


sexta-feira, 26 de março de 2021

VISITA


 

Mamãe, nos últimos

lampejos de lucidez

beijou-me dizendo

— Estou indo viu?

E foi. Mas não.

Na madrugada,

dançam luzinhas

nos meus olhos.

Deixo ao tempo

anunciar o que vem.

Disfarço tal criança

fazendo arte.

Livro-me do sono,

entoo baixinho

uma canção

para abrandar

a aflição

da saudade.

Vivo o agora.

Nego despedidas

no coração.


REPETITIVO


 

Da janela espiando a chuva

molhar as plantas,

eu e tanta solidão.

O som, cadenciado ou não,

que importa, mania vã

de musicar os ruídos.

Tento acompanhar

o movimento da folha pintada.

Não dá, é lento demais

para minha ansiedade.

Quinze de dezembro

tudo se parece.

Não tem ano,

é igual a dez, a mil...

Engasgo, quero vomitar,

quero chorar, entrar no ralo,

afundar na terra.

Acenderam uma lâmpada

em algum lugar.

Sorrateiro, fecho a janela,

quieto, com perguntas perdidas,

esmagadas, guardadas.

(Tão fugitiva e cruel essa minha alma).


ESPECTADOR


 


LEGADO ÀS CRIANÇAS


 

Criança alça voo! Pelas janelas abertas

dos teus olhos deslumbra horizontes,

são infinitas as formosuras expostas

pelo criador de todas as coisas e fontes

infindáveis. Aprofunda o conhecimento.

Não pensa nos desastres cotidianos,

é legítimo capacitar o discernimento,

indispensável reconhecer os profanos,

ainda o que é bom, verdadeiro e belo.

Acata o indelével como o efêmero.

Aceita em ti o pensamento paralelo,

o confuso, o desacerto, o desespero.

Esteja ciente de que haverá enganos

ao concluir o que precisa ser mudado,

verte compaixão sobre os desumanos,

o distúrbio alheio covardemente vedado.

Só derrama infinita e farta generosidade

quando consentida a poesia sem reservas,

contempla os ignorantes com neutralidade.

Sabe, eu também percorri águas turvas,

calei-me no afastamento, na observância,

para não me sujarem os hipócritas e insanos,

choquei-me com o insólito, a discrepância,

não os licenciei a me possibilitarem danos.

As adversidades reforçam as convicções

mas também, não as determino finalizadas,

as conclusões sofrem prováveis mutações,

liberto-me de imposições preconizadas.

Perdão, não posso conter as tuas dores

nem as tuas lágrimas, mas sabe, confia!

Enquanto acalento atenta teus pudores

reconheço-me inteira, cabe empatia.

Eu me desonero e me compreendo

no que é visceral e na incompletude,

mesmo ciente do que fico te devendo

para que te envolvas em só virtude.

E prolongo em ti com humildade

a menina que sentia e não sabia dizer,

gaguejava e despejava intensidade

no pranto que não conseguia conter.

Não vejas a culpa do que carregas,

a mágoa dos que tem consciência.

Entende, até nas coisas mais piegas

recolhemos as graças da indulgência.

Fatalmente, transfiro a ti a complexidade,

herda as rimas distintas no entendimento

do que além das entrelinhas se estende,

a ti a ousadia da tradução, a continuidade,

—És flor que floresce ao léu no vento,

ora brisa, ora furacão—  a eternidade

da semente do amor vencendo o tempo,

do mistério intrínseco do que transcende.


terça-feira, 16 de março de 2021

EXALTAÇÕES BLOQUEADAS


 

Quero desobrigar a ordem das rimas

mas altivas predominam, gozadoras,

as palavras borbulham especialíssimas

enquanto as denomino  assustadoras.

 

Deve ser efeito da causa deprimente

do que vivemos e, para não sucumbir,

acato exercícios fartos para a mente

conformar-se vigilante e não imergir.

 

Porque na verdade prefiro os versos

sem fronteiras, vazios de imposições,

estalos mágicos que surgem dispersos

como atalhos para as contemplações.

 

Permito hoje dar passagem à aflição,

Acostumar  em algum lugar de mim

os murmúrios das dores, contradição

que acompanha o paradoxo sem fim.

 

Hoje me condeno ao tormento, absorver

o caos sem direção, cenário de guerra,

dantes, nunca tendo tanto a transcrever

do total desamparo que assolou a terra.


Assisto às pessoas cansadas, empatia

escassa em muitos, irresponsabilidades,

descaso,  manipuladores da pandemia,

indigesta pobreza, nojentas sociedades.

 

Por isso a palavra contida, reticente,

enclausurada, extraviada, indefinida,

reservando o pobre quase evanescente

cântico para quando eu ensandecida

 

puder abraçar de peito encostado,

respirar sem máscara, sem perigo,

dançar uma noite de rosto colado,

saciar lesa a fome a que me obrigo.

 

Enquanto vêm as notícias das mortes

acumulo mágoas e alguma esperança

de retornarem os tempos complacentes,

quando sentia a vida como uma criança.

 

Eu anotava em papéis as impressões

recolhendo energizada e redundante

as minhas e dos outros as sensações,

e depois as unia ao poema inebriante.

 

Chega de dores, quero a minha alegria

de volta, basta de clausura e austeridade.

Quero saborear ainda o devir com euforia

e anunciar extasiante o gosto da liberdade.


RAZÃO X EMOÇÃO


 

Que a razão não vença a emoção

é o que sempre com fé pedimos,

não percamos a paz na construção

quando das reflexões emergimos.

 

Não te atoles nas dúvidas, espera,

a vida nos expõe sinais salvadores.

Nos simples contornos reverbera

a essência que nos faz sabedores

 

de que nada sem motivo surgirá.

Oferenda sentida em plenitude,

envolta em percepção evoluirá

para a vivência em completude.

 

Larga o coração atento, no entanto,

sem fronteiras para os sentimentos.

Não permitas lugar ao desencanto,

não malogres em vão os momentos.

 

Nem todo saber na alma bastará

se não for amor o que a desperta,

abraça com ânsia o que te salvará

antes que a realidade te subverta.

segunda-feira, 15 de março de 2021

DESPEDIDA


 

Quiséramos que a vida passasse

flutuando tal um barco sem leme,

sem projetar o fim que alcançasse

o destino que ninguém desteme.

Navegasse calmamente no silêncio

e a paz que merecemos previsível

fosse sempre escolha. O prenúncio

de que o rumo, esse fatal invisível

cordão conectado ao desconhecido,

não trouxesse junto a complexidade.

Não doesse na memória o tempo ido,

só permanecessem na cumplicidade

ecos de vozes, de risos, de festas,

resquícios de trejeitos, apreços,

a última valsa dançada, serestas

e cheiros impregnados, abraços,

regalos dos encontros de emoção,

harmonia, tantos retratos de orgulho

apontando tesouros com devoção.

Se melhorar estraga, ele feliz dizia.

Partiu assim, sem muito barulho,

deixando as sementes, o legado,

o exemplo de bondade e alegria.

Tudo agora é etéreo e enraigado

na luz, na calma da eternidade.

Mesmo sabendo, somos pequenos

ao repetirmos em religiosidade

—Seja feita a Tua vontade—

Ainda nos faltam fulgores plenos,

sufocamos, engasgamos rebeldes

e nos confundimos na ambiguidade:

aceitar a partida sentindo saudades.


quinta-feira, 11 de março de 2021

MEMÓRIAS


 

 

Baú empoeirado e preto,

retrato na parede sem tinta,

restos de sol nas poucas janelas,

toalha de mesa limpa e gasta,

discórdia antes do prato,

telha quebrada no quarto,

água no poço, distante,

folhas de bananeira, bananas,

limão, tomate, esterco,

barro constante nos sapatos mesmos,

inatingível barulho de crianças,

medo na noite escura,

grito perdido inútil,

solidão contínua,

alienado desgraçado.

quantas, tantas coisas.

Memórias sentidas,

vividas apesar,

passadas, pesadas.

sábado, 6 de março de 2021

PACIÊNCIA INCORPORADA


 

Passiflora incarnata,

chá de camomila,

incenso, serenata,

prazer que oscila.

Valeriana, serenus,

betabloqueadores,

milagres supremus,

tantos ensejadores.

Óleo de canabidiol,

hortelã, fluoxetina,

caminhadas ao sol,

canecas de cafeína,

explosão de cortisol,

reza com fé contrita,

na contraluz dançar,

uma vez uma birita,

paixão esperançar.

Salvo o que salva,

descarta os demais.

Olha a estrela d’alva,

elimina todos os ais.

Percebe toda a poesia

nos desafios contida,

sem frívola anestesia.

Aceita a vida subvertida!


PACIÊNCIA CRUCIAL




 

Paciência, enquanto águas mornas

turvam, ardem, embaçam os olhos,

nos levam a dependências eternas

acompanhadas de exemplos falhos.

 

Paciência, enquanto não condizem

os fardos das infindas obrigações

impostas a um corpo e induzem

ao silêncio diante das comiserações.

 

Paciência, enquanto reina a tirania,

a astúcia do sarrista, do impiedoso,

da brutalidade cruel, da egomania

explícita nos sarcasmos do ardiloso.

 

Paciência, enquanto vaza a lágrima

perante a dor e os frutos revoltosos

inúteis, em amplitude que exprima

os hábeis artifícios inescrupulosos.

 

Paciência. Enquanto jazemos soturnos,

assistimos às bestialidades impassíveis.

Gritos libertos em tormentos noturnos

denunciam vãs atuações incoercíveis.

 

Paciência, enquanto esperamos auroras

que ressuscitem as luzes da esperança,

enquanto que ainda versemos metáforas

e a vida não anestesiamos na lembrança.


SEGUNDA VISÃO DA AUTOESTIMA


 

Escolho o princípio

que está na veia pulsante,

a inflamar na alma sempre

o lúdico papel poético sem pudor,

a vencer o martírio do silêncio.

Escolho o princípio

que está no fatal vício,

porque não da ilusão da palavra,

a injetar a verdade nas mentiras

e a afastar os medos no cruel real.

Jamais o arrependimento corrosivo

que anula o trajeto do voo da emoção,

aniquila a visão do mistério do advir

e os versáteis rumos do vagar.

Toco os extremos dos excessos,

modelo a massa que me cabe,

amplio toda essência e acato a sina:

a de ser a pena suja de tinta

protagonizando o claro clima

a recepcionar o interno verso.

Insano, mágico e místico modo

de viver no sonho e perceber

o crepúsculo nas auroras.