terça-feira, 23 de dezembro de 2014

PARA SEMPRE



Que seja sempre um bom dia
para ser lembrado o amor.
Que esteja tão vivo
para ser amor enquanto for.
Que frutifique em qualquer estação
e a colheita não se restrinja
às necessárias mudanças de direção.
Que transpareça na face,
brilhe nos olhos
tal emoção primeira
e se exprima no gesto
como forma e meio.
Que a ele estejam confiadas
as auroras e amanhãs,
fazendo-se esteio, espelho e rumo
e onde se renovam as esperanças.
Que se derrame sobre o gelo
e num turbilhão arraste
todo resquício de dor.
Que escale sem medo os sonhos
e não se atenha a limites
inventados pelos que não o sentem.
Que se estenda por auras coloridas
a  tudo  e  a  todos.   E vibre,
vibre sempre, como oração
cantada em dia santo.
Pois enquanto ressoa o amor em nós,
ressoarão também pelo universo
nossas ondas, partículas justapostas,
compondo assim luminosas
a obra perfeita do Criador.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

PELA VARANDA PERENE



Duas janelas cerradas
deliberadamente
há séculos
Uma guarda a razão
(quando cansou o grito
enrouquecido em vão
e preservou a vontade)
Outra a lembrança
(quando o deleite do vivido
calcificou e iluminou
o altar da devoção)
Eu mesmo sobrei...
Invisível, indo e vindo,
incansável, destemido
a espreitar o alimento
de fora e de dentro.
A certeza do amor recolhido
há de escancarar a alma!

domingo, 12 de outubro de 2014

MINHA MENINA


Pego no colo,
embalo.
Enxugo as lágrimas,
sorrio.
Levo pela mão,
brinco,
também me leva.
Voamos em asas
de gaivotas.
Mostro essa vida,
às vezes calo.
Quero-a solta,
ela se enrosca
em indagações.
Liberto-a.
(Que nas descobertas
aconteça o riso
e disfarce o amargo
da não ressonância,
risco constante).
Há o tempo.
Sem reconhecê-lo,
ainda deixo
essa menina
dançando à toa
dentro de mim.


SEMENTES DE UM OUTRO TEMPO
(GERMINAÇÃO)

sábado, 11 de outubro de 2014

DO PARAPEITO VITAL




Não sou aquilo que vês...
A couraça que percebes
é  o excesso da fragilidade
que move ou tortura.
Dentro da concha cerrada,
a porta em ferrolhos,
permito frestas que me alimentam.
E o alimento caminha filtrado
no suporte do meu parapeito.
Nele contemplo
o complexo do ser
em solidão e unidade.
Contemplo a comunhão
da beleza e ironia,
da grandeza e mediocridade
dos rumos e destinos vãos,
do irreversível óbvio pó
e o tão divinal inevitável está
em simplesmente ser.
Em entendimento e devolução
converto o que vejo
em palavras que registro.
Em minha suposta apatia,
passam as coisas, os homens,
os fatos e deixam cargas e marcas
e a sensação de ser tudo
simples e infinito.
Não há nada que me exclua
ou me distancie da engrenagem.
Sou partícula num todo
de massa, cinza, éter.
Mesmo deste parapeito inescrutável
(dirás?)  e vital feito placenta,
habito um universo 
em que sou parte
e magicamente sou todo.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

APELO


Chuva
de pingo grosso,
forte,que faz barulho
nas telhas,
nas calhas,
abafa as vozes,
a música,
exala um cheiro,
escurece,
arrasta a areia,
os papéis, o lixo,
engrandece os mares.
Impiedosa rasga as folhas,
verga as plantas,
desaba os postes,
destrói os barracos,
ensopa as almas,
lota os ônibus,
fede os cachorros,
pressiona miseráveis,
entope os esgotos,
os ouvidos.
Caridosa fecunda a terra,
sacia os frutos,
refresca os narizes,
os ares.
Limpa, arrasta,
leva essa dor
que me arrasta,
me entope, me inunda,
aperta, espanta gentes,
me transforma.
Leva, refresca,
arrasta, me fecunda,
me sacia, me lava,
me livra, me limpa


DO PARAPEITO VITAL

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

ALQUIMISTA


Agora ressurgi
das paredes espessas
da minha placenta
e já não me inibe
o cordão umbilical.
Cheio de coragem e ânsia
percorri o mundo
Feri, me feri,
armazenei dores,
tentei alegrias,
desci ao fundo do poço
tantas vezes
e tantas  me resgatei.
Talvez o bastante para saber
que o risco continua
e a magia de cada instante
permanece ao alcance
da nossa percepção.
Volto ao ventre
e recolho o tesouro
reservado desde sempre
no parapeito da minha janela.
Fortalece-me a lembrança
da água morna na pele
e a luz que inebriou os olhos.
Alimento-me ainda
pelo cordão invisível
de onde tu,  imutavelmente,
transfere-me a vida.
E humilde me resigno
à emoção sempre clara
que a cada toque me invade.
Agora rompi as paredes,
as paredes visguentas
da minha placenta
e curvo-me de agradecimento
a tudo o que já foi.
Não me limito mais.
Mesmo sendo dependente
do que partilharemos
em nossos dias.
Sonho ainda.
E a isto não renuncio.
Estou pronta.





segunda-feira, 1 de setembro de 2014

RETRATO





O espelho zombeteiro
todas as manhãs
me lembra ontens
e  sonhos tombados.
As notícias cotidianas
me apressam.
Na consciência de partícula efêmera,
aberta para qualquer destino,
aflige o peso da palavra calada
e do ensaio em que me deixo.
Não fui feita para a superfície de nada.
E, no entanto, me perco, me embaraço
em buscas e tantos rascunhos,
tentando decifrar
a pose distorcida
de um retrato antigo e gasto
de mim mesma
(tão banal e parecido com outros)
misturado à confusão da gaveta.



DO PARAPEITO VITAL 

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

NA BARRA DA SAIA

Mãe
quero sorvete
Quem sabe
amanhã
Mãe
quero quintal
Aguarda
amanhã
Mãe
quero respirar
Espera
amanhã
Mãe
quero correr
Retenha
amanhã
Mãe
quero emergir
Sufoca
amanhã
Mãe
quero me igualar
Observa
amanhã
Mãe
quero me socorrer
Conspira
amanhã
Mãe
quero reagir
Luta
amanhã
..........
Mãe
Hoje é amanhã?

De
URGÊNCIA DE AURORAS

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

NO SAL DA NOITE





Adentro até minha parte insana
e encontro apenas respostas.
Parto tão breve como chego,
aparto-me o quanto me aproximo,
corto os pés nas lanças que espalho
deliberadamente, algoz e vítima
do meu próprio delírio.
Não desassocio a sede de vida
do meu estado de poesia
e faço alimento incondicional
o que retenho e me basta assim.
Incompleta e desajustada
agora recolho o vestígio do que sobra
e junto aos grãos acumulados,
protegidos por uma só crença
(de que será possível, será possível...)
Anestesio as feridas com o sal da noite
e me convenço, irá passar.  Durmo então.
Não descreiam os amantes,
nem desdenhem os tolos,
maturo o que despertará em tempo
e ainda gritarei como Maiakovski:
Ressuscita-me!  Nem que seja
porque te esperava como um poeta.
Ressuscita-me! Nem que seja só por isso.
Quero viver até o fim o que me cabe!

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

SIMPLESMENTE CRIANÇAS

Saio cedo quase todos os dias e vejo crianças sendo levadas às creches a pé, de bicicletas sob a chuva, enroladas em cobertores, arrastadas, sonolentas. Pais e mães correndo, porque o trabalho os espera e se eles pensam no que esperam amanhã, não saberiam dizer. Eu devo transparecer o que penso. Fatalmente me lembro da criança quieta que eu fui, quieta demais, pensativa, que via coisas. Via vultos, ouvia sussurros na noite e ardia em febre depois. Consequências, somatização, vivências. O que me sobrava era a imaginação. Deitada de costas no corredor estreito, do céu surgiam insetos de outros planetas, borboletas gigantes, gnomos. Imaginação um pouco colhida nos livros, nos livros mofados que tanto me salvaram, e assim me acostumei a imaginar, a sonhar, sábia saída quando se é criança. Mas a realidade bate com força e enxergamos. Sim, no plural, bem lugar comum. Por mais que acreditemos em superação ainda existe tanta miséria, tanta dor, tanta privação, tanta luta. Sobreviver passa a ser a meta e não viver. E por mais poesia que ainda possamos sentir, sentimos-nos impotentes. Como consertar algumas vidas, traçar outro rumo para essas crianças que desde cedo são castigadas? Pelo que? E se pensarmos em destino e indo mais além, que dizer das crianças imóveis sob as bombas, as crianças com fome, nuas no frio, as drogadas, alheias, as espancadas, estupradas, as pedintes remelentas, mãos imundas, as crianças destinadas a serem corpos sem alma, destituídas da vontade, filhos de ninguém largados no mundo. Tudo denuncia a crueldade desumana. Simplesmente crianças, o futuro! Não me falem em Deus nessa hora, nem em fatalidade nem escolhas. Ele chora como eu choro e como agora se contorce a criança dentro de mim...

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

MANDAMENTO

Em nome do teu próximo
reprimes tua necessidade
e retardas o chamado
de escalar os degraus do mundo.
Em nome do teu próximo
engoles o resto, o não,
o medo, o fel, o caos,
o permitido de cada dia.
Em nome do teu próximo
dás esmolas, jejuas,
velas impensados dogmas,
guardas o sábado.
Em nome do teu próximo
lanças bombas, vírus,
inventas Rocinhas, Febems,
Etiópias, Treblinkas,
raças, pecados, misérias.
Em nome do teu próximo
escorres o suor no peito,
esvazias tua vida, os minutos,
desperdiças oxigênio, pão,
espermas, campos férteis.
Por amor ao teu próximo
te limitas às vezes à solidão
para poupá-lo do fardo
desconcertante da tua dor,
por não saberes ainda agir,
por não saberes ainda falar.
À noite, cúmplice do silêncio,
retiras as bandagens
da tua máscara cotidiana,
retocas e renovas as marcas
do teu autoflagelo.
Na verdade do espelho
poderia refletir a luz,
a comunhão, o respeito
ao melhor do teu deus
e à oferta gratuita de ser.
No teu espelho irmão
impossível seria a destruição,
tanto suicídio em massa,
se reforçado na entrelinha
coubesse um     “também”.
Ama o teu próximo
como também a ti mesmo
e certamente admitirias
existir imagem e semelhança


DO PARAPEITO VITAL

quarta-feira, 9 de julho de 2014

PROPOSTA PARA FAZER AMOR

Se me quiseres,
com sutileza me namore.
Naturalmente.
Que a intenção esteja
transparecida no rosto,
de imediato perceberei.
Que venha primeiro
o tempo feito disponível,
atenção, paparico,
carência de voz
no meio da noite.
Confidência a meia luz,
sussurrada em cumplicidade,
é imprescindível.
Que haja um colo sempre
e cuidado no meu sono,
cafuné, uma flor colhida,
uma paçoca de coração,
bilhetes adolescentes,
surpresa carinhosa
não se compra na esquina.
E os olhos, ah, os olhos...
Que saibam refletir
um desejo incontido,
 irreprimível, irregressível,
irracionável, inadiável,
tudo impossivelmente in.
Que tenha força
para segurar minha cintura
e suor para misturar
com muito cheiro ao meu.
Haverá o reconhecimento
em nossas auras.
Integrarás tua verdade
sem receio à minha.
Aí então, entenderemos
de fazer amor.


De SEGUNDO TEMPO

domingo, 22 de junho de 2014

AO OUTRO QUE ESTÁ EM MIM



Bem sei me dirás,
que este arremesso constante
à direção da dor
é covardia, exagero,
autodegeneração.
Direi não ser hipócrita.
Direi também sofrer
de atração congênita,
ao rebuscar matéria-prima,
num desafio ousado
à sobrevivência.
Que em cada segundo
impera a intensidade
e preciso viver todos,
indiscriminadamente.
Mesmo assim ilhada,
neste obstinado farol
que me armazena de realidades,
ainda brotam sementes,
cultivadas como segundos e lágrimas.
De onde às vezes ressuscito
pelo outro que me aborda,
de densa aura nivelada, 
triturando sementes estéreis.
E não me negarei ao socorro
para o que é sombra
e já está em mim.
Então levito ressurgida
quando me estendes a mão
e te ofereço minhas flores.
Dispensarás tua máscara.
Aí então te reconhecerei.

POR TRÁS DO VIDRO FOSCO

domingo, 15 de junho de 2014

DECLARAÇÃO DE DIREITOS

Terás direito a cafés nas manhãs,
com pão e manteiga
 e toalhas brancas.
A ler jornal de pernas largadas
e a não ter pressa de levantar.
Terás direito a fazer amor
quando tiveres vontade.
Na relva quente, no meio da chuva
ou sob a luz da lua. Decretaremos
a liberdade além de quatro paredes.
A assistir filmes pornôs
ou futebol. Fingirei dormir
ou então, a um toque,
embarcarei na tua fantasia.
Terás direito a um último beijo
antes de alcançar a esquina,
envoltos em neblina, de mãos dadas,
estenderemos nossa meninice
 às multidões.
Terás direito a rir, ao compartilhar
complacente, extasiado, da alegria.
E a desfrutar de seus raios,
enquanto permanecer a cumplicidade
e a motivação dos sentidos.
Terás direito a ser o único,
porque isso não se obriga,
se sente, se sabe apenas.
A ter ciúme e brigar
quando me vires rodopiar
nos braços da ilusão.
Terás direito a pedir perdão
se acaso tentares um jogo
de sedução que não seja mútuo.
 De difícil e inatingível me disfarçarei,
para comigo brincares de conquistar.
Poderás contar tuas histórias,
ouvirei todas como primeira vez,
 colorir-me com flores do campo
 e violetas,
sem datas para comemorar, todas serão.
Terás direito a não ficar calado
quando eu chorar,
 abraçar-me ternamente
e saber que em ti fui buscar
o oásis e a tempestade da vida,
a harmonia e o desequilíbrio de amar.
Terás direito aos dois,
se for teu desejo me querer
do direito ao avesso.
E estranhados por estarmos
assim entranhados
por simplesmente bastar-nos felizes,
teremos mais do que direito a sermos.


Do livro
PLENITUDE