domingo, 25 de março de 2012

SIMETRIA

            


       Para Caio Fernando Abreu


Na aparente desordem
do movimento dos corpos,
extasiado contemplo
o absoluto da noite.
E nesse absoluto imutável,
onde meu corpo se move
em constante noite,
a desordem não é, senão
a simetria perfeita
para o milagre que surge,
assim, no êxtase.
Recepciono o instante
em que o arrepio
domina os poros
e transpassa por mim,
a vida.
Sei, sou o passageiro
nesse quadro constante.
Sou o efêmero, o pó
que ao pó retorna.
Mas tão completo
quanto ao êxtase
que vinga ao movimento,
tão integrado
quanto ao movimento
que se junta à desordem,
Tão pleno
quanto ao aparente
que rege o absoluto,
tão presente
quanto ao absoluto
que perfaz o eterno,
tão eterno
quanto ao instante.

Do livro 
DO PARAPEITO VITAL 
de Vania Clares

quinta-feira, 8 de março de 2012

A TODAS AS MULHERES



Por receber não sei bem se o dom ou a desgraça da sensibilidade,  ou por ser tão igual a todas as mulheres,  ou assisti-las me impele a estar, sei que hoje estou bem perto.  Bem perto, solidárias e condenadas que estamos por nascer de costelas alheias,  bem perto das que foram designadas a controlar impulsos, desejos,  calar,  calar.  Das que não calaram e pagaram o seu preço, das que não se importam, daquelas que deixam os sonhos para depois não sei quando, das que sonham para sobreviver aos golpes da realidade, daquelas que respeitam seus maridos e se obrigam à solidão,  que têm insônia e vagam pela noite, das que se entopem de calmantes, das que olham pelas janelas e acreditam em príncipes, daquelas que despejam seu amor e dão plantões no CVV, das que gratuitamente distribuem palavras cheias de força, das que ignorantes sabem da vida, das que fazem de suas vidas exemplos de coragem e esquecem a dor, simplesmente por não terem tempo de afundar nela, daquelas que esperam seus homens com a comida em banho-maria, fritam peixe as três da manhã, das que para não apanharem, catam seus filhos e humildes voltam no dia seguinte, daquelas que não voltam, das que esperam seus homens de baby-doll preto e se acham únicas, das que mutilam seus homens, das que se acham felizes, dependentes e gratas, das que choram nas novelas de televisão, engordam, engordam suas barrigas, engordam sua inércia mental, das que pegam Aids dos namorados e os perdoam, das que agonizam escondidas, das que inventam energias, das que abandonam as casas por medo de expor a sexualidade, das que oferecem a outra face, das que sorriem sempre, das que acreditam em tudo, das que são trocadas por duas de vinte, três de quinze, daquelas que fazem um jantar queimando um fumo e transam cheirando um pó, das que têm seus filhos sem razão alguma, das que se entregam a eles, das que agradecem tê-los, das que enfrentam filas por um brinquedo dado no Natal, das que abortam por falta de vocação, das que pedem paciência aos filhos e ensinam que a vida é isso aí, daquelas que ensinam que é preciso brigar, ir contra a corrente, das que trabalham nas ruas carregando sacolas, varrendo calçadas, vendendo sexo, daquelas que cobram pouco o prato do dia, das que cobram casas e carros, das que se resumem a lençóis limpos, a comida feita, a preocupação, das que vão a bailes de terceira idade e riem e dançam, das que costuram vestidinhos para as bonecas,  das que contam casos nos bancos de ônibus, das que são amantes e contentam-se com algumas horas em quartos de hotéis, das que fazem das migalhas o suficiente,  das que esquecem o necessário, das que não se conformam e vão à luta, das que se conformam e sucumbem, das que se escravizam a tinturas, cremes e tratamentos por medo das rugas, das que pagam por um pouco de amor, das que posam pra revistas endeusando suas formas, das que não percebem sua beleza, das dondocas empanturradas de análise, das mulheres de Atenas, dos morros,  das favelas, das amélias, das beatrizes, das luízas, das macabéas, das anas claras, das cléos, das sem nome, das anônimas nos trens na selva das cidades desumanas,  das meninas de vozes esganiçadas chamando a atenção dos garotos,  pedindo cafuné por carência de pai, que deprimidas não sabem se virgens ou não, daquelas que resolvem ser mulheres e não sabem o que fazer da meninice.  E, sendo mulheres e meninas, não sabem que a história de todas se repete, não sabem que em cada uma se encerra a história de todas, das gerações passadas e das que virão também.  E com todos os direitos adquiridos e bandeiras içadas,  reservadas estão a parir a continuidade da espécie.  Estou bem perto de todas e daquelas que não lembrei. Aleluia e piedade a todas nós,  e que alguém lá de cima nos proteja de alguma forma e sempre.

 

Do livro  SALÃO DE BAIL