terça-feira, 23 de novembro de 2021

AURA


 

Quem sabe estivéssemos salvos

se aprendêssemos a contestar

os inevitáveis dias tristes e cativos

quando nos deixamos acinzentar.

—A mescla de cores que de nós emana,

denuncia sem assentimento os sutis

reveses do conflito que se entranha

mas que enlaça salvadora matiz—

Pois tem cores a íntima harmonia

que se sobrepõe à luta dos dias,

e respondem com voraz alegria,

explodem na aura luzes, poesias.

Quem dera a vida só obedecesse

às reais cores que deveras a definam,

e que o amor ainda enternecesse

os cinzas corações que declinam


domingo, 21 de novembro de 2021

RESPEITO


 

Respeita o meu silêncio.

As marcas do meu rosto, ignora,

os retratos do que vivencio

acumulo na caixa de pandora.

Nem me avisa da falta de reboco,

do cio acobertado pelo descaso,

armadilha estranhada em desfoco,

fingida defesa dita que transvaso.

Respeita a minha revolta.

Porque tudo parece estagnado

e improdutivo e mesmo solta,

depois do caminho explanado,

ainda quebro as pedras da estrada.

Respeita o cansaço que arrasto

pelos tempos e tanto me degrada.

E por isso eu te conto: desgasta.

Assisto às cenas e quase decoro

as frases de efeito dos mercadores,

dos estoicos e dissimulados, demoro

a reconhecer os escarnecedores.

Fecho-me em copas, contundida.

Quando a morte me ronda disfarço

e finjo que posso buscar acolhida.

No eixo da minha mãe me ressarço.

Respeita minha pose fetal,

daqui um pouco eu nasço.

Que me componha mesmo letal

um resto de luz, me refaço

naquela que sempre guardo

para as emergências. Somente

ao perceberes como um dardo

o brilho nos meus olhos, veemente,

esquece meus pedidos anteriores.

Se possível me enfeita de flores

e me abraça de corpo e alma.

 

sábado, 20 de novembro de 2021

DA AUSÊNCIA DA BOCA


 

Fizeram-me acostumar a calar.

Arquitetei e desgastei argumentos

insistentemente, inutilmente

quando fingiram não ouvir.

Ondas refletem infinitamente,

incorporam mansamente

a emanação massacrante

das alheias feridas ostensivas.

Cauterizo com subliminares

e determinações conciliadoras

nas entrelinhas das orações.

Reciclo a névoa, recomponho

pensamentos, lapido em poesia.

Grita mais alto na minha mudez,

a voz que vem de dentro.


sexta-feira, 12 de novembro de 2021

CONFISSÃO


 

Porque eu necessitava falar

das árvores utilizei as cascas.

Eu me vi afoita à argila moldar,

gerei formas, símbolos, súplicas,

risos, imagens e poesias sentidas.

Registrei riscando as paredes,

ensaiei nos rabiscos, desenhos,

transcrevi multidões e virtudes

a bondade e a maldade dos cenhos,

e das sombras e feras as investidas.

Busquei nos recursos da natureza,

o papiro cortado em lâminas,

os segredos enrolei com firmeza

e distintas surgiram as páginas.

E porque busquei a longevidade,

as letras em pergaminhos agrupei.

Na pele dos animais, praticidade!

Areia, plantas, gorduras, testei,

penas e pedras. Nomeei as cores

e as tintas, complementei figuras,

retratei as histórias e as dores,

a hereditariedade nas escrituras.

Confesso. Uma noite sonhei,

em uma sala imensa estava.

De parede a parede avistei

volumosos e desgastados livros

que a alta estante ostentava.

No centro, uma mesa de madeira

pesada, escura e bancos inteiros.

No silêncio, sob vistosa bandeira,

de túnica marrom vestidos

e as cabeças encobertas,

seres introspectivos, calados,

na penumbra. De mentes fartas.

Eu era um velho, mais um deles.

No barulho de máquinas acordo,

descrevo fiel, almas e metrópoles

e pelo computador transbordo

a rapidez dos meus pensamentos.

Humilde escriba pelas vivências

obedecendo à sina dos tempos.

Hoje faço livros. Coincidências.

Escolhida e amada continuidade.



quinta-feira, 4 de novembro de 2021

GLÓRIA


 

Glória é brindar a prima luz da manhã,

quando a noite concedeu-me a poesia

de beleza e de crueza, quase heresia,

recepcionada por minha euforia pagã.

 

Glória é relembrar o tempo passado

e ter consciência de que tudo vivido

foi intenso, e até o pouco dispersado,

decretei fiel como impulso absorvido.

 

Que me absolva a vida do que não fiz,

não condene outros pela culpa máxima

e não abdique de ser a sempre aprendiz

na utopia do perfeito ou de obra-prima.

 

Glória, permanecer nesse estado alfa:

tenso, sereno, constante e inconstante,

tão aproximada do que aquece a alma

e domina, transborda liberta, exultante.

 

E nesse compasso incerto e insano,

misturado no conformismo e glória,

comungando o divino e o profano,

sigo registrando a minha história.