quarta-feira, 25 de novembro de 2020

ANJOS CAÍDOS


 

Os meios justificam os fins?

Anjos me tomam insistentemente,

de mim apoderam-se febris,

incitam-me simultaneamente.

Duela em mim a ânsia de seguir

e contemplar ora um, ora outro,

do marasmo nocivo e atroz emergir

e extinguir o pensamento que nutro

contra mim mesma, improducente.

Só imagino, delineio o fim pretenso.

Exaurida enfrento o meio e reticente

atravesso em dor e contrassenso.

Tento ponderar o que enumeram

no evidente espelho à minha frente,

mesmo nos desejos que me detiveram

em parte e todo, até o incoerente.

Esqueçam-me anjos do mal e do bem!

Peço trégua no coagido discernimento

onde luz e vida se esvaem e sucumbem,

deixem-me determinar o meu momento.

Enquanto todos os meios levam ao fim,

enquanto o fim abreviará todos os meios,

só me assistam anjos! Existir cabe a mim.

Atenham-se a meus aliados nos devaneios.


sexta-feira, 20 de novembro de 2020

NOTA DE REPÚDIO


 

Até quando a crueldade provocará a dor,

até quando seres ceifados pela repulsão,

até quando humanos julgando-se com direitos

a mais pela cor da pele, pelo poder, do ter e não ser?

Até quando a espada, a discriminação,

a pólvora, a incoerência, a ignorância,

e o pranto, o desterro e a estigmatização?

Cansamos! É sempre mais um, mais um a tombar

vencido, calado, espancado, morto

aos olhos de plateias inertes!  Chega!

Colocamo-nos atuantes e solidários

ao lado de todas as minorias e subjugados

por inconscientes e monstros armados

pelo ódio, homofobias, preconceito e racismo.

Ainda lutamos por um mundo mais justo

onde a nossa palavra e o nosso sentimento

não tenha que sufocar a vida que deveria

prevalecer por sobre todas as coisas.

Que a nossa meta se direcione ao Amor!

 

Sarasvati Editora e seus autores  

Vania Clares


DESIGUAIS?


 

Dedicado aos meus netos brancos, pretos, mulatos, índios, mestiços, pobres, ricos, aos que morrem injustamente todos os dias e ao futuro da nossa raça humana


Sinto, provoca em mim a acuidade

quando a tua cor é estigmatizada

pela dor, escrava da alheia crueldade

durante tantos séculos hostilizada

 

Sinto, acredite, ainda não entendo

qual o peso da minha branquitude

se os mesmos sentimentos valendo

são iguais e tantos à tua negritude

 

Lembro que na escola, hora do recreio

eu chorava com a menina Raimunda

sem hesitação meu ombro era esteio

nascendo assim uma amizade fecunda

Nem sei porque nunca me incomodou

ela ser desengonçada e preta, cabelos

de nuvens e tranças, pelo que herdou

apelidos e agressões sem escrúpulos

 

Sinto, acredite, até hoje não entendo

a discriminação com vãs justificativas,

juntos assistimos a revolta corroendo

sem decretos e soluções  assertivas

 

Por isso te digo, não somos culpados

pela nossa natureza e por sentirmos mais.

Por injustiças inúteis somos impactados

e optamos por acrescer aos desiguais

 

Entenda, me considero também minoria

ainda luto com garra para sobreviver,

também carrego dor na minha história,

mas não permito o opressor me envolver

 

Sou branca, pobre, velha e dependente

da luta, da minha e a tua força conjuntas

Somos diferentes por conta do excedente

nas nossas sãs humanidades distintas

 

Dize-me que não posso ter propriedade

do que encaras tendo a tua epiderme

Avalia quando respondo à tua criticidade

às vezes ser mulher comparam a ser verme

 

Vê, sou branca por acaso, também morro,

também ardo, também arrasto estigmas,

signos e sinas, e como tu também recorro

ao despejo de palavras cabíveis e legítimas

 

Aconchego-me ao teu ombro tal Raimunda.

Em comum nos move a inabalável esperança

de que um dia nos encubra aura rotunda

onde poderemos conviver em temperança

 

Onde vidas sempre  importarão


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

PRETENSO DESVARIO


 

Dentro das ações coercitivas,

na lista, lembrar-se de aspirar.

Que não faltem perspectivas

para em alguma vez desvairar

ao seguir o intuito quase mito

da crença válida da energia

(tantas vezes julgada delito,

outras sentida como magia)

Que se derrame em pranto

o vil, o incauto, o desatento,

aliene-se vencido ao lamento

o que não divisa tal alento.

Vê, tudo é tão claro e preciso.

Dentro das ações afirmativas

não te demores no inconciso,

nas substituições paliativas.

Como sorte e acaso enxergas

o evidente comando salvante

das emoções que expurgas

— consente o rumo delirante —

Deliberadamente eu proclamo:

basta de retardos sórdidos,

escutemos antes da vida evadidos

o supremo poder de um eu te amo.

domingo, 15 de novembro de 2020

RAÍZES


 

Tudo se repete.

No asfalto giram as massas

e os sons avisam no cotidiano.

Nas faces se expressam

deuses mortos e despedaçados.

Respiro os fatos que são hoje

e resta expelir o ontem lembrança.

Os sinos continuam gozadores

e as pernas são subestimadas

inevitavelmente pelo tempo.

O poeta que me habita

é alimento e castigo.

Ah, se eu pudesse

ser só pensador, sem ter sono,

só poeta, sem cansaço,

sombra, sem corpo,

não partilhar, nem lembrar

uma raiz atolada

na mera consciência humana.

HUMANIDADE


 

terça-feira, 10 de novembro de 2020

SOPRO


 

Ainda estou entre.

De um louvado lado

enraizado no ventre

como fruto imaculado,

o que apascenta

e promove esperança,

o que luz acrescenta.

Do outro a esquivança,

o que vem e aniquila

a carne e a vontade,

o desalento destila

e gera a insanidade.

Sem drama no entanto,

voragem que arraste

ou me provoque espanto

pelo efeito que transveste.

—Corporifico-me ao entre

e mesclo clarão e agonia,

crio o ponto que concentre

o ápice de uma só sinfonia—

Colho a consonância enfim.

Da palavra, a poesia imantada.

Deus ainda sopra em mim,

permaneço encantada.


segunda-feira, 2 de novembro de 2020

CHAMADO


 

Abertas, desveladas

as portas ao que vem

desmedidamente.

As emoções se deflagram

acintosamente

e as dores revolvem

o acúmulo do que sangrou

e nem sabe se quer ainda.

Acorda, lê sua alma, retém

o sentimento que insiste

enraigado e dolente.

Arranca as amarras

e defesas inúteis,

concede-se ao interno

e entorna a palavra.

Ao cumprir o feito

inebria-se, transpassa,

vibra, transborda

de amor gratuito e intenso.

Derrete geleiras absolvidas

sem máculas e culpas,

sem pecado original.

Na essência simbiótica

comungada absorvida,

imediata devolução.

A poesia detém o seu papel.

Prova o poeta da transpiração

entrega-se sem ressalvas

e pressente para o que veio!