domingo, 31 de maio de 2020

PELO FILTRO DO POETA




Quem diz da tristeza do poeta
quando assiste, empurra para dentro,
consternado vê injustiças e coleta,
elegendo a sua alma como centro.

Quem diz do fel que engole,
assimila, macera o joio, tritura,
coagula o sangue que escorre,
enquanto superação mistura.

As notícias de sempre exasperam,
são as mesmas desde o raiar do dia.
Caim mata Abel. Há muito impuseram
que impere o poder da covardia.

Que o alcance os que puderem!
Deixa-se ilha em meio às lágrimas
tornadas nele oceano, até secarem
os desencantos das forças ilegítimas.

Quem diz da tristeza do poeta
quando extasiado contempla a lua,
nas nuvens esconde e fugaz deleta
do poema, a dor que gerou sua.

Permitam vez em quando que chore
a alternância entre morrer e viver.
Muitos abismos paradoxos escolhe
e como pertencente tenta se absolver.

Recolham com desvelo seu fruto!
Pelo poeta as dores são filtradas,
convertidas em bálsamo absoluto,
no amor-compaixão transmutadas.


sábado, 30 de maio de 2020

LIBERDADE DISFARÇADA



Tento deixar-te seguir,
mas inevitável como deleite
acompanho à distância
o teu voo altaneiro fluir.
Amparo sem açoite
o teu pouso, sem ânsia.
Teu sono antevejo.
Tento deixar-te sonhar
mas coloco-me insinuante
rastreando por uma entrada
circundante contornar
o teu delírio, estonteante,
disfarçada de vestal, velada
no altar do teu desejo.
Tento deixar-te sem amarras.
Entoo canto de sereias
para que de olhos vendados
te enfeitices nas metáforas
entrelaçadas em teias
nos meus ardis enredados.
Acolha meu ensejo.
Tento deixar-te liberto
enquanto assim resiste
cativo e invisível esse amor
que despejo em ti e te oferto.
Acata o que em mim insiste
escuta na alma o clamor
do que nas noites versejo.


quarta-feira, 27 de maio de 2020

ASSENTIMENTO



Aceito o voo rasante
na quebrada das ondas,
o derradeiro sol do dia,
as luzes multicores
no horizonte ao longe.
Aceito as gotas do orvalho
descansando sobre a terra
onde meus pés afundam
margeando direções
sem garantia de acertos.
Aceito a fé que me ampara
e se faz viva a cada manhã.
Porque infindas e incessantes
serão as dúvidas e mistérios
que borbulham no inconsciente.
Aceito a dor que me toma
e compõe a diversidade
de lidar com desafios
cotidianos para lapidar
em mim o discernimento.
Aceito a degeneração dos corpos
enquanto cresce a permissão
de apreender com intensidade
o que ainda não alcançaram.
Aceito a regeneração dos sentidos,
enquanto toda a percepção
volta-se para o mais que perfeito.
Aceito o que me domina
sem convencimento de nada.
Sentindo simplesmente
na liberdade dos dias,
com emoção e cuidado,
a fecunda oferenda da vida.
O adágio escolhido e consentido,
o absoluto amor que me habita.

VÃOS IDEAIS?




Tombam sobre a terra
na efusão dos hormônios
do que a mente encerra
como justo e direito,
ideias e corpos.
Tombam sobre a terra
curtas vidas, e sonhos
ceifados por fogo certeiro,
meras identidades sem valor.
Tombam sobre a terra
futuras sementes famílias,
junto às lágrimas desesperadas
de mães perecidas,  caladas
e eternamente sem resposta.
Porque derrubar interesses
do poder e da ganância?
Tombam sobre a terra
cotidianamente Miragaias,
Martins, Dráusios e Camargos.
Tombam sobre a terra
a fé, o futuro, amanhãs.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

ANUNCIAÇÃO


Bate, bate sino,
entra naquela casa
onde nem o vento alcança
e as lágrimas são reprimidas.
Bate, bate sino,
deixa que o teu som
enfrente as portas de vidro
onde a justiça está fora.
Bate, bate sino,
Grita sino.
As vozes se cansaram
a estrada é árdua
as promessas traiçoeiras
a fome intensa
a paciência limitada,
crianças jazem inocentes
sob as balas perdidas.
Bate, bate sino
anuncia que o  dia pode vir,
que a nossa bandeira hasteada
fará as mães sorrirem
e ainda podemos confiar
no que chamamos de irmão.
Anuncia que os ruídos cessaram
que a mão escrava é liberta,
os olhos foram desvendados,
a liberdade não é sonho
e os párias foram dizimados
da legenda do poder.
Ah, quanta força, quanto suor
para movimentar as cordas.
Quanto sangue e quanta miséria
para ouvir e louvar a vitória,
Bate, bate sino
que há muita gente a espera

sexta-feira, 22 de maio de 2020

PRESSÁGIO




Espreita-me. Confia.
Anestesia o desalento,
dilua junto ao pranto
as dores acumuladas
do teu desencanto.
Deixa sob o remanso
as feridas tatuadas
das mágoas na alma.
Ecoa o alento suplicante
pelo que ainda acreditas
Imune e salvo.
Despeja no berço do dia
um olhar mais brando,
desnuda tuas peles.
Espera-me. Encanta-te.
A vida urge.
Os sinos tocarão
anunciando a sublimidade
de permissivos abraços.
Perfumei-me de lavandas
e enfeitei o nosso leito
com alfazemas e rendas.
Haverá o justo socorro
aos que amam.
Haverá o devido tempo
de viver.



terça-feira, 19 de maio de 2020

CONDIÇÃO: MULHER




Já me perdoei.
E como Lilith
ainda encontro
asas no espelho,
ainda busco
onde pousar.
Já sucumbi no fogo
entre as mil
ardidas vivas,
ainda me queima
nas entranhas
o estigma imposto.
Já caminhei nua
pelo deserto
em autopunição
por meus pecados.
Já ofendi Atena
e acabei decapitada
por transformar
homens em pedras.
Já ofereci a face
vermelha dilacerada
direita e esquerda.
Já subi ajoelhada
as escadas do templo
e continua tatuado
em mim o pecado original.
Já rasguei minha carne
ao provar amor
com dor parindo.
Todos os dias
apalpo a marca
da perpetuação
da espécie.
Todos os dias
lembro que sou
significado e
significante.
Todos os dias 
sobrevivo
como costela de Adão.
Nem todos os dias
sobrevivo.
Quero viver!


segunda-feira, 18 de maio de 2020

REGALOS




Quando floresce
entre as folhas
uma flor miúda.
Quando o sol
invade e aquece
minha pele.
Quando meus pés
tocam a relva
banhada de orvalho.
Quando aspiro
aliviada e serena
minutos insistentes.
Quando não aflige
o amanhã que virá,
se virá.
Quando desisto
de olhar o chão
e descubro o arco-íris.
Quando a beleza
das asas livres
sobrepõe o efêmero.
Quando o abraço
tem a intenção
de alcançar a alma.
Quando um tudo bem
tem o poder
de ofertar um colo.
Quando abro os olhos
e recebo um sorriso
anunciando o dia.
Assim, simplesmente
contemplada
renasço plena.
Assim reconheço
e acolho
a serenata da vida.



PAISAGEM



Atrás da vidraça nas alturas
a mulher observa a cena
da cidade em movimento.
O ar condicionado gela as veias.
Na ciclovia, entre o rio e o trem
corre um homem pássaro verde
sobre duas rodas, solitário,
sob a chuva cadenciada
encharcando seu corpo,
escorrendo no rosto e capacete,
pesando seu fardo, num desafio
de sobrevivência e resiliência.
Apostam corrida e o vento empurra,
o homem... o rio... e o trem...
A mulher atrás da vidraça estremece,
deseja a liberdade da chuva no rosto,
do homem que corre pra não pensar.
Anestesiados, amortecidos,
carregam suas escolhas como tantos,
aceitam a vida que finge seguir,
dormentes esperando amanhãs...

sábado, 16 de maio de 2020

NOVA ERA



Mergulhados nos versos
em esferas outras
próximas aos deuses
eles aceitaram e sentiram.
O arrepio absoluto
da poesia vibrou,
estremeceu, coloriu,
preencheu, inundou
cada neurônio,
cada célula,
cada veia pulsante.
Atentos cultivaram
dentro da alma
a lembrança
da vida, da justiça,
da mesa farta,
de seres viventes
em sintonia.
O amor doação,
incondicional.
E quando o corte
da realidade
anunciou a morte
não se abateram.
Anjos? Sábios?
Refletores da verdade?
Herdeiros dos segredos
do mais que perfeito?
Os cantantes, os músicos,
os poetas, os sensíveis,
pragmáticos assentiram
sobreviver a esperança.
E junto à emoção
germinada sem medo,
sem egoísmo, sem culpas,
outorgam às crianças
o amanhã.



sexta-feira, 15 de maio de 2020

DO SILÊNCIO DO POETA


Entregou-se à emoção
sentindo antes do outro
traçando todas as vidas
com entrega e abnegação.
Não só o bom e o belo
percorreram sua essência,
assim como o verdadeiro
cruel, tudo ficou indelével.
Obedeceu ao seu interior
de onde fluíam palavras
indo ao encontro
do que lhe contavam
os olhos alheios.
Amoleceu corações,
enterneceu outros,
catalisou no âmago
toda dor recolhida.
Diante do caos
fez-se a catarse,
amalgamou se perdeu,
entristeceu, chorou
com a visão do fim.
Fechou a cortina da alma
e largou-se ao Deus dará.
Se a voz do poeta se calar
acabou a esperança.