quarta-feira, 29 de abril de 2020

CAMINHOS


Tanto remoemos quereres
retardando, desdenhando
o intimamente sabido
do deleite dos prazeres.
Basta-nos a quase egoísta
visão de um éden fervilhando
na solitude concebido,
para aceitar o que nos cabe.
Atrever-se a trilhar um rumo
arquitetado sem solidez,
requer a ousadia do primeiro
e único passo, sem projeções.
Audacioso é o pensamento
aceso, quando clama o sonho.
Completo, quando o feito
da demora importa menos
diante da escolha do caminho.
Livre, quando o amparo
do que te acolhe é a voz
do desejo do teu coração.

ANTES DO CAFÉ




Às vezes visualizo o espaço
entre nós acentuado, morno.
Tu, que ainda de gesto escasso
nem sequer conteve meu corpo,
segue menino desajeitado
nas asperezas se escondendo,
encolhido, com receio de tato
em vãs desculpas se perdendo.
Tu, que quase não me beija
e o meu toque estranhas 
saiba, há devoção que queima
e guia minhas entranhas
Que norteia todo o tempo
meus pensamentos como teimas,
só vejo o eterno sendo
pleno, quando viva me deixas
Será que de mim te lembrarás,
quando te chocar meu rosto?
Quais marcas dele fitarás
do real,  do passado, o oposto?
Tu, memória que ilumina
as alternâncias dos dias,
tem o tempo que domina
minhas agoniadas fantasias,
quando  todo te conheço.
Na estrada infinda forrada
de histórias antigas amanheço,
no úmido da chuva derramada,
sorrindo antes do café ...

E DAÍ?




E daí se ele calou a vida toda
e não foi permitida a palavra
porque quando quis aprender
foi para os faróis recolher migalhas.
E daí se ele acreditou nas mentiras
e esperou que alguém o socorresse
confiando como um cego no seu cão.
E daí se ele desperdiça a poesia
carregando fardos maiores que si mesmo
deixando para amanhã não sei quando.
E daí se ele medica os doentes
sem proteção por vinte horas diárias
porque prometeu e é sua missão.
E daí se ele trabalhou até por demais
da conta e morreu na fila do emergencial
sendo enterrado como indigente.
E daí se o sangue dele é vermelho
Intoxicado, congestionado, massacrado.
E daí se tua prole passa fome,
quem Mateus pariu que o embale.
E daí se não é teu pai, teu filho, teu irmão
E daí?

terça-feira, 28 de abril de 2020

PARA UM AMANHÃ


Amanhã dançarei um tango
ostentando um justo vestido preto
com uma fenda sinuosa
mostrando pernas maliciosas.
Permitirei que me filmem
e me nomeiem de um codinome
qualquer feito doida, pode ser.
Nem ligarei se me associarem
a uma Pollyanna contemporânea.
Amanhã aceitarei quem me ama
e o seu cuidado salvador,
me deliciarei em delírios
sonhados ao som de Barry White,
afrouxarei os braços para me guiar
e para onde a estrada nos levar.                            
Amanhã dispensarei as roupas
que inventei para me fantasiar
com ares respeitosos de senhora.
Ornarão agora somente as saias coloridas
que combinam com guirlandas floridas.
Amanhã escolherei um dia todo
para abraçar minhas crianças,
guerrear com almofadas, cantar no chão,
fritar bolinhos de chuva
e costurar vestidinhos para as bonecas.
Em volta à mesa, riremos de tudo
e de quando dividíamos bolachas recheadas.
Revirarei todas as lembrancinhas e fotos antigas
e pendurarei nas paredes. Porque a memória
só guarda o sentido e poucos detalhes
e aprisiona a menina nos álbuns amarelados.
Amanhã não quero fazer contas.
Danem-se planejamentos e contenções,
nem economizarei para me fazer feliz.
Percorrerei milhas no mato e tocarei
o orvalho das folhas e aspirarei
o frescor das flores miúdas.
Amanhã não terei dó de rasgar papéis.
Porque o passado jaz contido
no coração e nos poemas.
Liberarei o espaço para o inusitado,
uma nova história pra contar.
Amanhã farei um bolo confeitado
e com um vinho seco e água com gás
brindarei mais um dia de vida.
Que seja provado enfim o néctar dos deuses.
Abraçarei meus amigos ternamente
- pois esqueço de lembrá-los
como são vivos e importantes
e na nossa rápida caminhada
poucos restam a saber de nós.
Pobres de nós que nos pensamos
eternos e onipotentes...
Amanhã será sempre sonho?

MOLEMENTE



Largo-me assim, molemente,
na corrente dos dias, ao acaso,
inútil relutar, ir contra a corrente.
Acomete-me presságio infindo
e transborda sutilmente
o que nas noites extravaso.
Nesse movimento incessante
abrigo o belo, abrigo a dor,
num segundo se faz urgente,
inevitável se faz fecundo.
Se faz vivo, se faz presente
o que no rastro não é descaso.
Depende de nós
é o que depende a vida?

INFÂNCIA



Inocente espera
de um tempo, preparo
para o que talvez venha.
Cheiro protetor e doce de mãe.
Olhos atentos,  escondidos.
Vibração continuada
para nada ouvir
ou fingir que assim seja.
Cheiro de papel gosmento
de gibis indecentes.
Sombras balançantes
nas vastas janelas.
Altas estantes coloridas
de livros que atiçam e salvam.
Sinal de entrada, aula de religião.
Deus está lá e brinca de iluminar
Fica em mim, ela implora.
À noite, choro incontido
no travesseiro quente.
Entra nesse abraço
e permite que vingue a vida.

domingo, 26 de abril de 2020

DAS ESCOLHAS




A fome e a sede de doces palavras
denunciam o sonho e o meu desejo.
Quero voz para libertar as amarras,
minha ânsia delira no que versejo.

Como desassociar de mim o espaço
onde perfazem mil eus e seus rumores?
Arrasto as dores e nas almas me embaraço,
assumo como meus os seus temores

Céus! Concedam que em mim se recicle
todo o mal que os incrédulos germinam.
Seja eu poeta, aquele que ciente permite
se formar na essência o que ensejam!
  
E quando em mim o desalento acumula
o resto, a ira, a revolta, eu também lamento.
Ordeno, separo das palavras o que anula
o encantamento, e lanço ao dia renascimento!

quarta-feira, 22 de abril de 2020

LUZ




Vê! Não dês tempo à ânsia e letargia
embora a adversidade incida
para que se perca a energia
e assim obrigue a mente ensandecida

Sinta! Na agoniada dor que te encarcera
e mascara sem piedade o teu querer,
haverá também o milagre que regenera
se o caminho se dispuser a percorrer

E percebe, tudo à volta silencia
quando consentes romper num grito.
Em um levante a alma se alumia
E na busca da essência está escrito:

Em ti a congênita inspiração divina
Em ti a generosa e merecida oblação
Em ti a pergunta, a palavra que intima
A procura, o socorro, a luz da salvação!


terça-feira, 21 de abril de 2020

ARAGEM



Era um casulo solitário,
cru, desajeitado e denso,
repleto como um relicário,
aparentemente inanimado
e temente em meio às agruras.
Em um espaço vulnerável e tenso
agarrado avidamente à sua coleta
pendia inseguro em meio ao vento,
frágil, no rumo contrário, incessante.
Eu antevia o que ele nem sabia.
Assistia cuidadosamente
aos seus conflitos angustiantes,
enquanto se debatia pela vida.
Nada fiz, a não ser velar zelosa
para que não rompesse o ciclo
e vibrar pela sua destreza.
Mas avaramente o queria assim,
sob meu cuidado e calor,
confiante de que eu estava ali,
contemplando-o, como se o feito
e todo ensaio fosse meu.
Foi num dia iluminado de sol,
sem tempestade ou alarde,
do casulo só restaram esmaecidos
fragmentos entre úmidas folhas.
Pousadas em meus ombros
vislumbro as asas reluzentes
de cores e círculos interligados,
condensados de mim.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

CLEMÊNCIA



Ao invés do homem se adaptar
ao que é parte e criado antes dele
e o milagre da vida reverenciar,
és tu natureza,  que humilde impele
a tua condição de resistência.
Sobrevives à invasão insana.
Pedimos licença e clemência,
por nossa devassidão profana.
Diante das dores que nos consomem
hoje, reconhecendo tua resiliência,
rogamos uma chance por tanta cegueira.
Mereceremos a divina dádiva?
Aboliremos o cimento e toda sujeira
que aprisiona a tua vida jorrando ávida.
Que as raízes permitam os frutos,
para que os nossos procedentes
vejam como sorte não serem absolutos.
E subtraiam o caos das mentes dementes.
Gratidão por ser a glória que insiste
em se erguer sobre a incultura do egoísmo.
Consente surgir o protótipo do que resiste,
dá-nos a luz antes do inevitável abismo,
perdoa nosso mal, salva nossas sementes!

segunda-feira, 13 de abril de 2020

DAS NOITES INSONES




Acontece às três da manhã
de forças estranhas do mal
nas trevas se manifestarem?
Ligo não! Poetas se despem
de lamúrias, encaram acintes,
autodesafios e se enredam
no pertencimento da noite.  
Não há mornidão que eu aceite
quando pressinto a poesia
neste meu ciclo biológico
atípico e desregulado.
O cheiro orvalhado espalhado  
e o silêncio velado, me sustentam
e ressuscitam a leveza
que minha alma clama.
A rede antes da luz me divisa.
Desfadigada derramo o poema.
Um suspiro redentor
e me integro à aurora.
Vivificada  e salva!