segunda-feira, 22 de outubro de 2012

ORAÇÃO



Piedade Senhor, piedade.
Este meu corpo
que encerra o pó cansa,
cansa das oscilações dos ânimos,
do estado letal de degeneração,
das inevitáveis perdas.
Esta minha alma
à tua semelhança,
recicla incoerentemente
a força a cada aurora,
a toda aspiração permitida
e na consciência do  existir.
Piedade, piedade peço.
E peço como todos,
que as violetas floresçam
e a brisa me traga
cheiro de chuva e terra,
a terra onde deleitarei meus pés.
Possa eu ver o arco-íris
e sinta a necessidade
das tempestades que arrastam
e renovam os caminhos.
Que eu perdoe, mas também
resguarde mais minhas faces.
E apesar de tudo
enxergue o outro
como parte inegável de mim.
Seja eu testemunha
da felicidade também,
do renascer das cinzas,
que eu tenha os ombros leves,
jamais negue o conforto.
Os teus desígnios
eu possa entender
e questione todos atalhos
com sabedoria.
Que eu perceba a luz ao longe,
antes da névoa prenunciada
e bem perto avalie com calma
as interpretações várias.
Que eu as aceite,
limitado que sou e sei.
Eu, que tenho meus mortos
tão presentes em mim,
permite que permaneçam.
Assim como permanece a certeza
do amor que vingará
feito fruto no amanhã,
como ressurgirá sempre a criança
saudando a vida que domina.
 Assim como o espírito
que se aninha desde sempre
e suporta a fraqueza e o medo
nas adversidades constantes,
transmutando a dor em elevação.
Faze-me humilde na pretensão
ante a possibilidade do eterno.
Que eu não esqueça de rezar
antes de dormir,
com a mesma emoção de agora.
E tenha a mesma emoção
de quando percebo
no quanto amo e sou capaz
e no que tenho para amar.
Dá-me o crepúsculo
sem a aflição das mudanças.
Com varandas, escolhas,
cadeiras de balanço, risos,
abraços apertados,
incensos, papéis,
flores de maracujá,
lágrimas ternas, surpresas,
perplexidade de infância,
vozes de lucidez,
conformidade.
E sem pedir muito,
um amigo para falar
nas madrugadas.


domingo, 30 de setembro de 2012

CIRANDA




Parei para dormir, depois de recolher
complacente e resignada,
todas as dores do mundo.
Precisei estar perto das imperfeições
e arrastei meu casulo por rochas frias,
 pedras lodosas, águas estagnadas,
por aridez de desertos.
Ditei-me adentrar em todas as essências
e transmutar em poesia
a dor e a imperfeição.
Cansada de tentar convencer os céticos,
procurei meus iguais.
E esperei sem ansiedade,
o tempo para encontrar minha casa.
No meu sono confiei no Pai
e veio a inspiração para compor a alquimia
que curasse todas as feridas.
Recordei-me de onde e por que vim
e vesti-me de coragem para retornar.
Despertei enxergando dimensões de luz
e lancei-me em águas cintilantes.
Banhei-me de mel e alfazemas.
Abraçou-me o sol.
Purificada me vi quando vibrei o amor
no amanhecer.
Brinquei com as crianças,
dancei ciranda
e finalmente pude ser eu mesma.
Hoje me surpreende viva este amanhã.
Ajoelho-me ao pé do arco-íris,
despejo cores na terra fértil.
Enfeito-me com vestido branco transparente.
Nos cabelos, guirlanda de pétalas lilás.
Flores do campo no buquê.
Perfume de jasmim.
Banquete de festa. Vinho de maçã.
Agora canto. Estou linda.
Hoje sou.

Do livro "SEMENTES PARA UM OUTRO
              TEMPO - GERMINAÇÃO"
de Vania Clares

terça-feira, 28 de agosto de 2012

PROFISSÃO: ESCRITOR

Recentemente reli a biografia de Cora Coralina e toda vez me emociono. Uma mulher humilde, que estudou até a 3ª. série do primário, que fazia doces para sustentar quatro filhos, teve  a sorte de ser descoberta por  Carlos Drummond de Andrade e aos 75 anos conseguiu publicar o primeiro livro de poesias deixando uma obra belíssima.
Alguns exemplos também me emocionam e incentivam:  José Saramago foi autodidata,  trabalhou como serralheiro, mecanico, desenhista industrial e também publicou na maturidade.  Herman Hesse foi operário, Rui Barbosa,  jurista. Carlos Drummond de Andrade foi  funcionário público, Lya Luft, professora universitária. Vinicius de Moraes foi diplomata, Ignácio de Loyola Brandão, jornalista. Machado de Assis, de vendedor de doces fundou a Academia Brasileira de Letras juntamente com José Veríssimo e tantos outros, ligados ao ofício da palavra mas não tendo a profissão de escritor, que é uma profissão regulamentada, mas não reconhecida.
Em 2008, o Deputado Antonio Carlos Pannunzio entrou com o Projeto Profissionalização do Escritor, projeto  de Lei nº 4641, inspirado talvez em outros países como a Inglaterra, onde toda editora é obrigada a doar um livro de todos títulos publicados para as blibliotecas, como a Espanha, a Alemanha e a Argentina, onde os escritores recebem subsídios para sobreviver. Aqui no Brasil, há alguns anos, nosso Mário Prata lutou para poder preencher seu Imposto de Renda corretamente, escritor ao invés de assemelhado, enviando uma carta ao então presidente  Fernando Henrique Cardoso, assim como lutaram Leila Miccolis, Urhacy Faustino e tantos outros.  Algumas entidades e associações trabalham arduamente como é o caso de UBE, onde já aconteceu o Congresso Brasileiro de Escritores com a presença de vários autores, com  palestras, oficinas  e saraus. Apesar de tudo, o Projeto 4641 foi indeferido em abril de 2012. 
Talvez, penso eu, pode ser muito complicado inventar-se leis com seus deveres e direitos. O que regeria? Teríamos exceções? Cora Coralina por exemplo, sem ter cursado uma universidade poderia ser escritora? O que estaríamos perdendo se fosse uma das exigências? É difícil imaginar quais seriam os quesitos, as exigências, afinal, temos estilos, idades, poetas, contistas, tradutores.
Imagino também quantos  analfabetos seriam nomeados e listados  para qualquer benefício que poderia advir; haja visto o cabide de empregos, o nepotismo que assistimos. De qualquer maneira, não existe escola para formar um escritor, assim como um jornalista que assina sua matéria sem precisar de diploma.
Eu mesma fico nesse impasse. Assumir ser  escritora - independente de renda ou regulamentação - é o que menos se pensa quando se tem essa arte. Tenho meu ganha pão e  encontro espanto quando digo que trabalho na área financeira e administrativa desde os quatorze anos por força da necessidade. Gosto do que faço, mas gostaria também  de ter mais tempo para me dedicar, passar mais noites em claro, obedecer a minha sina.  Sempre deixei meu ofício de escrever como uma coisa minha, meu segredo, meu registro de vida. Já com a família formada, escrevendo desde sempre, procurei as Oficinas Literárias para sentir meu texto. Ainda me vejo ao lado do Plínio Marcos, num grupo de quase oitenta pessoas, entre artistas, jornalistas, oito poetas. Num exercício para a liberação da palavra eu grito:  “Não é minha essa terra, nem o espaço em que levito, não é minha essa luz, nem o canto que tento, só é minha essa angústia e a vontade de voar, só é minha essa carga e a contradição de seguir” . E questiono:  que faço com isso?  Ele, quase irado me ordena:  aproveita esse dom, solta essa poesia!  Mais tarde, Caio Fernando Abreu me pergunta com lágrimas nos olhos, ao ouvir no meu poema : ...”é um defeito meu não saber falar e aparecer com folhas escritas...”  Vania você acha que é um defeito? Caio, querido amigo dos silêncios repletos de palavras, prefaciou meu Urgências de Auroras em 92 dizendo: “... E me pergunto então se a poesia não será, justamente, a recriação obsessiva e delicada de algo que, sem ela, seria insuportável de ser vivido”. Seria mesmo, eu respondo agora, não saberia ter trilhado outro caminho senão este.
Algumas coisas, depoimentos de amigos, emoções que me são devolvidas sempre me levaram a publicar meus livros, quatro dos quatorze já escritos. Sei produzir o livro depois de escrito, registrar na FBN, catalogar na CBL, obter ISBN, revisar, diagramar, escolher o papel, acompanhar a impressão, organizar encontro para autógrafos, enviar convites,  negociar as porcentagens com livrarias, já trabalhei para editoras e aprendi. Tenho muita coragem para enfrentar essas etapas, mas sou péssima vendedora. Quase todos escritores são. Invejo os que andam pelas noites vendendo de mão em mão, os que se mantem só escrevendo, os que conciliam com outras atividades mais coerentes como teatro, cinema, artes plásticas. Não almejo sobreviver de livros, muita utopia para este Brasil faminto, mas sonho ainda com uma forma de viabilizar meu projeto de vida, vender um livro para produzir outro pelo menos, alguma forma para que aconteça isso, que apareçam mecenas, empresas, forças ocultas, loterias, quem sabe?!
Não me sinto no direito de desistir, pelo que sei da minha densidade, do que posso dar, da transpiração que vem depois da inspiração. Não me sinto nesse direito. Fico imaginando quando eu me for deste plano o que meus filhos farão com o legado de tantos papéis... Mas um direito acho que posso ter: o de pedir que comprem meus livros, presenteiem os amigos, ajudem a divulgar, compartilhem,  peçam mais, preciso continuar... Afinal, o que alimenta a alma é menos importante do que alimenta o corpo?

sábado, 28 de julho de 2012

Entendendo ser escritor - capítulo de Permanências Outonais de Vania Clares

“Na aparente desordem do movimento dos corpos, extasiado contemplo o absoluto da noite. E nesse absoluto imutável, onde meu corpo se move em constante noite, a desordem não é, senão a simetria perfeita para o milagre que surge, assim, no êxtase”

As sensações e arrepios multiplicaram.    Dotada de percepção pragmática, cultivava e alimentava essa particularidade, para registrar ainda mais tudo o que percebia.  Como se a acompanhasse uma legião de seres, reforçava tal certeza nesses momentos.
Dentro do ônibus, Viaduto do Chá, trânsito infernal, olha as pessoas apressadas, sente nos lábios o suor salgado e recebe todas as emanações que pairam sobre o conjunto que a enternece.  Paralelas que se encontram em algum tempo e se convertem em palavras.  Enquanto a avalanche das palavras ordena-se em frases, o arrepio percorre o corpo. 
Debruçou-se a outra compreensão e permitiu que transbordassem as palavras.  Seria nesse processo um instrumento, um elo para que a essência das coisas viesse ao todo.  Palavras carregadas da emoção que agora recolhia humildemente.  Seria a intérprete dos que sentem e não sabem falar, a propulsora dos que nada sentem e precisam sentir, a condutora dos necessitados de poesia.
Estava pronta para aceitar os seus pensamentos fora de ordem, repetitivos, incoerentes,  para emergir do limbo dos estáticos, para comungar das aflições dos perambulantes das noites, para exaltar o deslumbramento dos que se decidem olhar, para revelar o que há atrás das cortinas, para ousar se mostrar liberta na emoção.
Estava pronta para se curvar à força das ventanias, a se encharcar de chuva e a se levantar ao nascer do sol.


terça-feira, 19 de junho de 2012

RETRATOS DE INFÂNCIA DA MENINA POETA


          O cachimbo do avô esfumaça a casa. O olhar duro condensa a retidão das coisas justas e certas, mas não conta como custa mantê-lo.  Somente a pele amarelada e os pés arrastando-se no assoalho encerado falam do seu cansaço.  Parece um padre quando toma do copo de vinho.  Quando sorri e conta as mesmas histórias, a menina suspira aliviada.  A avó parece ter os cabelos grudados; untá-los com babosa é um ritual semanal e só depois de ajudá-la a menina pode deitar-se na grande barriga e escutar o barulho que faz.  Barriga nenhuma seria igual à da avó.  Nem o cheiro de chuchu frito e polenta com molho.  Nem as ameixas e taturanas do quintal.
         O pai não explica muito.  Traz nos ombros uma caixa de feira e quando aponta na esquina é o sinal de que está tudo bem.  É festa.  Os tomates, as laranjas, cheiram como uma parte boa da vida, deixam tudo mais perto, acessível.  A menina toca as escamas dos peixes e parecem cristais.  Imagina-se como a concha rosada, medrosa e cativa, espiando.  O pai toma banho,  e mesmo assim, permanece alguma coisa nele que recende a superfície, a natureza.  Quando no seu desespero adulto chega irado, ela deseja não mais vê-lo, mas, às vezes, ele se encolhe no chão e  tem vontade de abraçá-lo, como se pudesse deter toda dor. Esforça-se para entendê-lo, mas só consegue ver o suor que salga seu peito.
         A mãe reza ajoelhada na escuridão e a menina se encanta com sua paciência com Deus e conformidade com o peso do trabalho.  Não o rejeita, só pede forças.  No Natal enfrenta uma fila comprida para conseguir um brinquedo de graça.  Coloca embaixo das camas das crianças com um chocolate e um hálito protetor.  Todos os dias esfrega a roupa da casa como se lavasse a sujeira do mundo.  A menina senta na escada e acredita que a mãe chora porque a roupa está encardida.  Quando encosta-se à pele tão macia, cheirando gostoso, acha que a vida também pode ser assim, limpa e suave, como a mãe.
         Enternecida a menina se mostra com os irmãos.  Supõe protegê-los com a mão no ombro, mas não acha que merece quando os pequeninos correm ao seu encontro com tanto amor.  Exige-se perfeita, porque eles a seguirão.  Ouvira isso não sabe onde, nem quantas culpas acumulou.
         As amoras da rua são provocantes, assim como o menino que faz xixi e demora, fingindo não estar sendo visto.  A cor das amoras mancha o branco e custa esquecer o cheiro extasiante do pecado (à noite a menina faz de conta que o travesseiro é um deus de barbas brancas e chora).
         As outras crianças da rua estranham esta que fica da janela observando, e a  isolam. Jogam bola, brincam de pega, correm na chuva, escondem-se no musgo do poço, no limoeiro, no esterco, na lama e cheiram a cachorro molhado e mamão verde.  A menina queria um jeito de dizer às outras que não estava tão alheia. Bastava olhar, era o seu modo de participar, registrar era sua função.  Mas, eles a deixam e nem ligam quando parece divagar e contar estrelas.
         Talvez um dia gostasse de ser astronauta, sabe lá.  Mas astronauta gostaria do cheiro de tinta dos livros, do oleado da carteira da escola, de lápis de cor, das meias do uniforme, da boina e daquelas folhas tão brancas?  Só ela parece precisar tanto daquilo; libertar as palavras que se atropelam na garganta, esvaziar a alma, revelar os pactos e segredos das noites, a enraizada intimidade com sua janela e o mundo, captar e entender a poesia que brota e a faz assim.
         O avô, o pai, a mãe, as amoras, a terra vermelha, as crianças suadas, as estrelas, o cheiro da chuva de dezembro (que tantas vezes lhe pareceria igual), o apito da fábrica de vassouras, as folhas, as promessas de ano novo, nada conseguiu. 
Nem deixaram perceber, lembrar à menina da janela, que tudo é tão profundo, mas tão breve.  Que tudo se degenera, células, sonhos, mas paradoxalmente permanece.  Tudo na rápida mutação se armazena e é preciso agarrar-se na seqüência dos minutos e é preciso, sobretudo,  navegar nessa continuidade, sabiamente.
         Parecerá, sempre, que só a vivemos depois, como lembrança, a vida que escorre e passa por nossos dedos e nossos olhos.

Do livro ESBOÇOS IMPERFEITOS
De Vania Clares

terça-feira, 22 de maio de 2012

ÁRIA






Às vezes hiberno.  Necessito.
Indisciplinadamente e sem discernimento
maturo na quietude o que assimilo.
Repleta de mundo, de rostos, de gestos,
penso, penso que somos e temos.
Quase se perde o tempo do que foi
e diante do que resta finjo me apressar.
Atenta à voz semente que se forma
vibro, desfibrilo, ressuscito.
Incontida e luminescente
canto as notas do amor que recolho.

Do livro QUASE ARAGEM
de Vania Clares

sábado, 28 de abril de 2012

DESCASO




A noite ficou me espiando
com frescor outonal.
Parecia convencer
-Venha, todos são pardos.
Não se notará o vestígio
do teu passo incerto,
nem tua lágrima no cio- 
Balançou a folha
um aviso de presença.
Banhou meu corpo pálido
uma estrela insistente
sob as nuvens cinza.
A noite ficou me espiando,
enquanto fingi dormir.

do livro QUASE ARAGEM
de Vania Clares

domingo, 25 de março de 2012

SIMETRIA

            


       Para Caio Fernando Abreu


Na aparente desordem
do movimento dos corpos,
extasiado contemplo
o absoluto da noite.
E nesse absoluto imutável,
onde meu corpo se move
em constante noite,
a desordem não é, senão
a simetria perfeita
para o milagre que surge,
assim, no êxtase.
Recepciono o instante
em que o arrepio
domina os poros
e transpassa por mim,
a vida.
Sei, sou o passageiro
nesse quadro constante.
Sou o efêmero, o pó
que ao pó retorna.
Mas tão completo
quanto ao êxtase
que vinga ao movimento,
tão integrado
quanto ao movimento
que se junta à desordem,
Tão pleno
quanto ao aparente
que rege o absoluto,
tão presente
quanto ao absoluto
que perfaz o eterno,
tão eterno
quanto ao instante.

Do livro 
DO PARAPEITO VITAL 
de Vania Clares

quinta-feira, 8 de março de 2012

A TODAS AS MULHERES



Por receber não sei bem se o dom ou a desgraça da sensibilidade,  ou por ser tão igual a todas as mulheres,  ou assisti-las me impele a estar, sei que hoje estou bem perto.  Bem perto, solidárias e condenadas que estamos por nascer de costelas alheias,  bem perto das que foram designadas a controlar impulsos, desejos,  calar,  calar.  Das que não calaram e pagaram o seu preço, das que não se importam, daquelas que deixam os sonhos para depois não sei quando, das que sonham para sobreviver aos golpes da realidade, daquelas que respeitam seus maridos e se obrigam à solidão,  que têm insônia e vagam pela noite, das que se entopem de calmantes, das que olham pelas janelas e acreditam em príncipes, daquelas que despejam seu amor e dão plantões no CVV, das que gratuitamente distribuem palavras cheias de força, das que ignorantes sabem da vida, das que fazem de suas vidas exemplos de coragem e esquecem a dor, simplesmente por não terem tempo de afundar nela, daquelas que esperam seus homens com a comida em banho-maria, fritam peixe as três da manhã, das que para não apanharem, catam seus filhos e humildes voltam no dia seguinte, daquelas que não voltam, das que esperam seus homens de baby-doll preto e se acham únicas, das que mutilam seus homens, das que se acham felizes, dependentes e gratas, das que choram nas novelas de televisão, engordam, engordam suas barrigas, engordam sua inércia mental, das que pegam Aids dos namorados e os perdoam, das que agonizam escondidas, das que inventam energias, das que abandonam as casas por medo de expor a sexualidade, das que oferecem a outra face, das que sorriem sempre, das que acreditam em tudo, das que são trocadas por duas de vinte, três de quinze, daquelas que fazem um jantar queimando um fumo e transam cheirando um pó, das que têm seus filhos sem razão alguma, das que se entregam a eles, das que agradecem tê-los, das que enfrentam filas por um brinquedo dado no Natal, das que abortam por falta de vocação, das que pedem paciência aos filhos e ensinam que a vida é isso aí, daquelas que ensinam que é preciso brigar, ir contra a corrente, das que trabalham nas ruas carregando sacolas, varrendo calçadas, vendendo sexo, daquelas que cobram pouco o prato do dia, das que cobram casas e carros, das que se resumem a lençóis limpos, a comida feita, a preocupação, das que vão a bailes de terceira idade e riem e dançam, das que costuram vestidinhos para as bonecas,  das que contam casos nos bancos de ônibus, das que são amantes e contentam-se com algumas horas em quartos de hotéis, das que fazem das migalhas o suficiente,  das que esquecem o necessário, das que não se conformam e vão à luta, das que se conformam e sucumbem, das que se escravizam a tinturas, cremes e tratamentos por medo das rugas, das que pagam por um pouco de amor, das que posam pra revistas endeusando suas formas, das que não percebem sua beleza, das dondocas empanturradas de análise, das mulheres de Atenas, dos morros,  das favelas, das amélias, das beatrizes, das luízas, das macabéas, das anas claras, das cléos, das sem nome, das anônimas nos trens na selva das cidades desumanas,  das meninas de vozes esganiçadas chamando a atenção dos garotos,  pedindo cafuné por carência de pai, que deprimidas não sabem se virgens ou não, daquelas que resolvem ser mulheres e não sabem o que fazer da meninice.  E, sendo mulheres e meninas, não sabem que a história de todas se repete, não sabem que em cada uma se encerra a história de todas, das gerações passadas e das que virão também.  E com todos os direitos adquiridos e bandeiras içadas,  reservadas estão a parir a continuidade da espécie.  Estou bem perto de todas e daquelas que não lembrei. Aleluia e piedade a todas nós,  e que alguém lá de cima nos proteja de alguma forma e sempre.

 

Do livro  SALÃO DE BAIL

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

AR E TERRA






Assim eu necessito. Ser parte
na linha prata do horizonte,
onde pousam os merecimentos.
Com perseverança retive, medi a força
das minhas asas, para ousar
sobrevoar o alto-mar.
Já esmoreci, retornei tantas vezes
ao posto estático de observador,
na insegurança de tempestades.
Mas os olhos refletem
o que absorvem. Vejo-me.
Limpa e leve. Luz.
Então me volatilizo, me exponho,
me atiro ao vento.
Que terra me acolherá?
A que mesmo imutável o Criador
harmonizou com o universo?
Carrego as inocências,
as armadilhas, os arquétipos,
as artimanhas, os versos,
os prantos, os cantos,
as quedas, as crenças
e tudo o que por séculos
percorri para me compor.
Num transporte de inquietações
mas também de certezas,
aceito o risco das respostas.
Sei que as mereço.
Não me lanço em vão, nem duvido
do por que ganhei asas.
Pois com a visão da fronte,
me acompanho agora,
detalhando em mínimos gestos
o que os vendavais me ensinaram.
A rodopiar um outro passo.
Suave. Novo. Apaixonado.
Sinto o amor inteiro
e me assisto sobre e dentro dele.
Curvo-me ao que vem
e deixo para trás os cegos,
os incrédulos, os apoéticos.
E assim, na linha prata
do horizonte onde dizem sonho,
onde se confundem, ocultam,
mas são colocadas as terras do Pai,
não me abandonará a leveza
no momento do pouso.
Quando delicadamente beijarei
o merecido solo e das asas
despejarei a luz recolhida.
E a resposta virá.
Nas sementes germinadas
brindando a aurora.

do livro SEMENTES PARA UM 
OUTRO TEMPO - GERMINAÇÃO
de Vania Clares





domingo, 29 de janeiro de 2012

EU, A PRIMEIRA PESSOA

Eu, a primeira pessoa,
dispersei-me na explosão das partículas
para entender a extensão do uno.
Eu aprendi com a natureza
a respeitar minhas imperfeições
e a exaltar a minha soberania.
Eu me espelhei em cada ser vivente
e por vezes me esqueci de mim.
Eu criei e ditei as leis no Monte Sinai
e propaguei na terra o fruto da idéia.
Eu ardi nas fogueiras da inquisição
e espalhei minhas cinzas
nas estradas do holocausto.
Eu dilacerei em meio a minas perdidas
e arquitetei as sementes do possível.                          
Eu compactuei com o produto do poder
e escondi meu rosto na estéril culpa.
Eu flagelei minha carne em nome do perdão,
e marcada pelo hálito do pecado
apalpei as lágrimas calcificadas.
Eu purifiquei-me nas águas do rio Jordão
e despida de mim corri na madrugada
em busca de um resto de noite.
Eu dividi-me entre o bem e o mal,
aspirei humildemente o ar da manhã
toquei polens de lírios e jasmins.
Eu ofereci minha outra face,
despi-me da fantasia do imponderado
para abraçar o desconhecido que veio.
Eu reconheci meus corpos,
banhei-me nas lágrimas da emoção
e recolhi no imo, o torto, o avesso. 
Eu me transformei em algoz
e o bálsamo para tuas feridas.
Eu me prostrei diante dos desígnios,
chorando macerei a dor e a poesia
e entreguei às asas da esperança.
Eu ensaiei  a compaixão
e vibrei o amor num simples sorriso.
Eu me fiz instrumento e mensageiro
da tua palavra e do teu grito.
Eu deixei-me transparente cordão
o mesmo que desde embrião
me une a todos.
Eu, a primeira pessoa
- contendo consentidamente
  tu, eles, nós – 

do livro QUASE ARAGEM
de Vania Clares