sexta-feira, 29 de agosto de 2014

NA BARRA DA SAIA

Mãe
quero sorvete
Quem sabe
amanhã
Mãe
quero quintal
Aguarda
amanhã
Mãe
quero respirar
Espera
amanhã
Mãe
quero correr
Retenha
amanhã
Mãe
quero emergir
Sufoca
amanhã
Mãe
quero me igualar
Observa
amanhã
Mãe
quero me socorrer
Conspira
amanhã
Mãe
quero reagir
Luta
amanhã
..........
Mãe
Hoje é amanhã?

De
URGÊNCIA DE AURORAS

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

NO SAL DA NOITE





Adentro até minha parte insana
e encontro apenas respostas.
Parto tão breve como chego,
aparto-me o quanto me aproximo,
corto os pés nas lanças que espalho
deliberadamente, algoz e vítima
do meu próprio delírio.
Não desassocio a sede de vida
do meu estado de poesia
e faço alimento incondicional
o que retenho e me basta assim.
Incompleta e desajustada
agora recolho o vestígio do que sobra
e junto aos grãos acumulados,
protegidos por uma só crença
(de que será possível, será possível...)
Anestesio as feridas com o sal da noite
e me convenço, irá passar.  Durmo então.
Não descreiam os amantes,
nem desdenhem os tolos,
maturo o que despertará em tempo
e ainda gritarei como Maiakovski:
Ressuscita-me!  Nem que seja
porque te esperava como um poeta.
Ressuscita-me! Nem que seja só por isso.
Quero viver até o fim o que me cabe!

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

SIMPLESMENTE CRIANÇAS

Saio cedo quase todos os dias e vejo crianças sendo levadas às creches a pé, de bicicletas sob a chuva, enroladas em cobertores, arrastadas, sonolentas. Pais e mães correndo, porque o trabalho os espera e se eles pensam no que esperam amanhã, não saberiam dizer. Eu devo transparecer o que penso. Fatalmente me lembro da criança quieta que eu fui, quieta demais, pensativa, que via coisas. Via vultos, ouvia sussurros na noite e ardia em febre depois. Consequências, somatização, vivências. O que me sobrava era a imaginação. Deitada de costas no corredor estreito, do céu surgiam insetos de outros planetas, borboletas gigantes, gnomos. Imaginação um pouco colhida nos livros, nos livros mofados que tanto me salvaram, e assim me acostumei a imaginar, a sonhar, sábia saída quando se é criança. Mas a realidade bate com força e enxergamos. Sim, no plural, bem lugar comum. Por mais que acreditemos em superação ainda existe tanta miséria, tanta dor, tanta privação, tanta luta. Sobreviver passa a ser a meta e não viver. E por mais poesia que ainda possamos sentir, sentimos-nos impotentes. Como consertar algumas vidas, traçar outro rumo para essas crianças que desde cedo são castigadas? Pelo que? E se pensarmos em destino e indo mais além, que dizer das crianças imóveis sob as bombas, as crianças com fome, nuas no frio, as drogadas, alheias, as espancadas, estupradas, as pedintes remelentas, mãos imundas, as crianças destinadas a serem corpos sem alma, destituídas da vontade, filhos de ninguém largados no mundo. Tudo denuncia a crueldade desumana. Simplesmente crianças, o futuro! Não me falem em Deus nessa hora, nem em fatalidade nem escolhas. Ele chora como eu choro e como agora se contorce a criança dentro de mim...

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

MANDAMENTO

Em nome do teu próximo
reprimes tua necessidade
e retardas o chamado
de escalar os degraus do mundo.
Em nome do teu próximo
engoles o resto, o não,
o medo, o fel, o caos,
o permitido de cada dia.
Em nome do teu próximo
dás esmolas, jejuas,
velas impensados dogmas,
guardas o sábado.
Em nome do teu próximo
lanças bombas, vírus,
inventas Rocinhas, Febems,
Etiópias, Treblinkas,
raças, pecados, misérias.
Em nome do teu próximo
escorres o suor no peito,
esvazias tua vida, os minutos,
desperdiças oxigênio, pão,
espermas, campos férteis.
Por amor ao teu próximo
te limitas às vezes à solidão
para poupá-lo do fardo
desconcertante da tua dor,
por não saberes ainda agir,
por não saberes ainda falar.
À noite, cúmplice do silêncio,
retiras as bandagens
da tua máscara cotidiana,
retocas e renovas as marcas
do teu autoflagelo.
Na verdade do espelho
poderia refletir a luz,
a comunhão, o respeito
ao melhor do teu deus
e à oferta gratuita de ser.
No teu espelho irmão
impossível seria a destruição,
tanto suicídio em massa,
se reforçado na entrelinha
coubesse um     “também”.
Ama o teu próximo
como também a ti mesmo
e certamente admitirias
existir imagem e semelhança


DO PARAPEITO VITAL