Saio cedo quase todos
os dias e vejo crianças sendo levadas às creches a pé, de bicicletas sob a
chuva, enroladas em cobertores, arrastadas, sonolentas. Pais e mães correndo, porque
o trabalho os espera e se eles pensam no que esperam amanhã, não saberiam
dizer. Eu devo transparecer o que penso. Fatalmente me lembro da criança quieta
que eu fui, quieta demais, pensativa, que via coisas. Via vultos, ouvia sussurros na
noite e ardia em febre depois. Consequências, somatização, vivências. O que me
sobrava era a imaginação. Deitada de costas no corredor estreito, do céu
surgiam insetos de outros planetas, borboletas gigantes, gnomos. Imaginação um
pouco colhida nos livros, nos livros mofados que tanto me salvaram, e assim me
acostumei a imaginar, a sonhar, sábia saída quando se é criança. Mas a
realidade bate com força e enxergamos. Sim, no plural, bem lugar comum. Por
mais que acreditemos em superação ainda existe tanta miséria, tanta dor, tanta
privação, tanta luta. Sobreviver passa a ser a meta e não viver. E por mais
poesia que ainda possamos sentir, sentimos-nos impotentes. Como consertar
algumas vidas, traçar outro rumo para essas crianças que desde cedo são castigadas?
Pelo que? E se pensarmos em destino e indo mais além, que dizer das crianças imóveis
sob as bombas, as crianças com fome, nuas no frio, as drogadas, alheias, as
espancadas, estupradas, as pedintes remelentas, mãos imundas, as
crianças destinadas a serem corpos sem alma, destituídas da vontade, filhos de
ninguém largados no mundo. Tudo denuncia a crueldade desumana. Simplesmente
crianças, o futuro! Não me falem em Deus nessa hora, nem em fatalidade nem
escolhas. Ele chora como eu choro e como agora se contorce a criança dentro de
mim...
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