Embaraço-me nos fios de cristal, que se
esticam e adentram pelo redondo do espelho, que me afronta desafiador. De braços abertos, peito impulsionado por um
eu em busca do encontro de quem sabe muitos, escalo sua transparência, destruo
as mãos e a face, contendo gemidos sem voz. Bruscas paradas, rápidos
pensamentos. Enfastio-me de ser sombra: o retrocesso é demasiado fácil e
tentador. Não. Não fecharei os olhos. Rasgarei mais dermes. Acenderei mais
luzes. Os sinos insistirão em chamar
cotidianamente à razão e a aurora despertará sem se incomodar com os
vermes. À frente, emaranhados, os fios.
Escorrego em planície de cristal.
Sensação, sem ter prova, de que outra sombra caminha nos mesmos
fios. Aperto os lábios no vidro e o seu
embaçado redondo afinal me engole, me envolve dominador. As carnes já não são feridas. Nem o frio consegue dilacerar. Nitidez dos lados. Bem perto, vejo as imagens dos não seres, que
se agridem e se matam; os seus gritos não chegam a mim, mas eu vejo as faces
deturpadas pela não reação. Os olhos
impacientam-se. Mostra espelho! Será o
encontro ou não o percebi? À pergunta,
respondem dois únicos fios, que à distância parecem encontrar-se num ponto sem
tempo. O ar torna-se diferente, a
sensação de presença aumenta. Somente o
não saber assusta. A fumaça não queima
os olhos. Já apalpo o que antes era nada
e o que vai transformar me obriga à contemplação, mesmo sendo ainda o prenúncio
do que virá. Equilibro-me no fio que a cada passo se aproxima do outro para
alcançar o ponto sem tempo de mim mesma.
Tarda. Continuo a esperar. Quem é
esta, espelho, que tanto anseio e louca exalto?
Quem é esta, que se sobrepõe ao meu cansaço e emerge transpondo
defesas? Quem é esta, que me exorcizará,
me velará, me ressuscitará, me acordará zombeteira e vitoriosa? Quem é esta, espelho, que desconheço?
quarta-feira, 6 de janeiro de 2021
VIAGEM AO FUNDO DO ESPELHO
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