quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

VIAGEM AO FUNDO DO ESPELHO


 

Embaraço-me nos fios de cristal, que se esticam e adentram pelo redondo do espelho, que me afronta desafiador.  De braços abertos, peito impulsionado por um eu em busca do encontro de quem sabe muitos, escalo sua transparência, destruo as mãos e a face, contendo gemidos sem voz. Bruscas paradas, rápidos pensamentos. Enfastio-me de ser sombra: o retrocesso é demasiado fácil e tentador.  Não.  Não fecharei os olhos.  Rasgarei mais dermes. Acenderei mais luzes.  Os sinos insistirão em chamar cotidianamente à razão e a aurora despertará sem se incomodar com os vermes.  À frente, emaranhados, os fios. Escorrego em planície de cristal.  Sensação, sem ter prova, de que outra sombra caminha nos mesmos fios.  Aperto os lábios no vidro e o seu embaçado redondo afinal me engole, me envolve dominador.  As carnes já não são feridas.  Nem o frio consegue dilacerar.  Nitidez dos lados.  Bem perto, vejo as imagens dos não seres, que se agridem e se matam; os seus gritos não chegam a mim, mas eu vejo as faces deturpadas pela não reação.  Os olhos impacientam-se.  Mostra espelho! Será o encontro ou não o percebi?  À pergunta, respondem dois únicos fios, que à distância parecem encontrar-se num ponto sem tempo.  O ar torna-se diferente, a sensação de presença aumenta.  Somente o não saber assusta.  A fumaça não queima os olhos.  Já apalpo o que antes era nada e o que vai transformar me obriga à contemplação, mesmo sendo ainda o prenúncio do que virá. Equilibro-me no fio que a cada passo se aproxima do outro para alcançar o ponto sem tempo de mim mesma.  Tarda. Continuo a esperar.  Quem é esta, espelho, que tanto anseio e louca exalto?  Quem é esta, que se sobrepõe ao meu cansaço e emerge transpondo defesas?  Quem é esta, que me exorcizará, me velará, me ressuscitará, me acordará zombeteira e vitoriosa?  Quem é esta, espelho, que desconheço?

 


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