domingo, 6 de setembro de 2020

ORIENTAÇÕES PARA O PARTO




 “Hermann Hesse transmitiu a Clarice Lispector e a  outros, Clarice a Vania e esta sabe-se lá se conseguirá.  O milagre da vida, isso é o que existe.   Nós somos os perseguidores da sua beleza, coletores de mensagens, apenas. Do livro "Água    Viva", a mensagem extraída”.

 

                         Há que se libertar de dependências supérfluas, concretas demais.  O corpo é um fardo que delimita a nudez da entrega. Aprenderás com o tempo, e algum ensaio, que a morte te atemorizando nada mais é do que a sucessão de placentas rompendo-se, decurso natural da vida que tanto exaltamos.

                        Há que se abster de querer ou imaginar o macro mundo que te envolve. Não há necessidade, já que tão enraizada estás em seus meandros e artifícios (tudo te levará à mesma perplexidade).   Bastar-te-á apenas ser conivente e cúmplice das coisas, das pessoas.   O que te alimentará será o halo circundante que antecede o âmago do objeto, nada de apossar-te da verdade, liquefeita que já estará para o teu entendimento.  A intimidade, esta adquirida na vigilância constante, no espreitar zeloso da noite, te iluminará; cuidarás para que a magnificência e a dissonância do que existe estejam intactas e resistentes diante da pequenez de tantos.   Permanecerás a assistente dos minutos e terás o direito de integrar-te na transmutação inevitável, na troca e na comunhão de energias constantes.

                        Para tanto, é preciso que quase abdiques de ti mesma, da vaidade, deixando somente a humildade aguardando e te guiando no mistério.   Esquece a sabedoria que há na ordem - pode ser sábia, mas não exata.   Aceita a desarmonia, o emaranhado do pensamento e a ansiedade.  O IRREAL REAL É O INSTANTE.  Ele será a tua busca.  O decorrer imutável.  Perseguirás a densidade dele e te curvarás dominada, tão ineficiente tua vontade.  Inutilmente resistirás, acatarás a complexidade entre o morrer e o gerar de células. Única aspiração: a conquista do advir.

                        E assim, no expirar e aspirar engolirás a placenta que te fará capaz o bastante para não desertares nessa sequência frágil e sagrada.  Não desejarás a imortalidade de Mozart nem a fila de seus seguidores; te contentarás em parir palavras, o que te aliviará da sina que carregas às vezes, tão comiseravelmente.  Há que se fascinar por elas. Inebriar-se em seus entremeios e poder.  Enfim, terás dilacerado todas as entranhas e merecido o espanto e o gozo.  Terás alcançado a dimensão de doar-se simplesmente.  Te sujeitarás a morrer sempre e renascer tal fênix  para recepcionar virginalmente o instante, que continuará infinitamente: o instante-já, a obra intrínseca da criação.


 

3 comentários: