segunda-feira, 22 de junho de 2020

CARTAS ATEMPORAIS TRÊS




Caro poeta  amigo,

do poema que eu te mandei, o Voo dos Anos, hoje a impressão dele se completou inteira. Ficou no ar, nas entrelinhas, o que deixamos de contar. Por isso te escrevo. Aproveito agora, é quase de manhã e porque ainda preciso que saibas. Sempre é tão difícil falar e deixo nos porões não só o passado, como também o que perco,  as oportunidades. Não aprendi. Quando repasso o filme, percebo o que não atentei no momento.

Percebo agora com clareza a nossa fragilidade, a sensível aparência de colocarmos sempre a emoção à tona, à frente comandando as nossas ações. De tudo que relembramos da juventude, ainda conservamos a atitude vã de assumir os pecados do mundo, de carregar tantas culpas injustamente. Amigo, somos tão parecidos, tão infinitamente integrados, inteirados a sentimentos, poucos se identificariam. A nossa necessidade tão visível, às vezes assusta e afasta as pessoas. Mas não é solidão o que sufoca, é o não feito. Até nos confortamos com a solidão, como um ajuste a ser feito sempre. Mas há a sensação de pouco tempo. Ou será porque queremos algo mais dessa louca corrida.  O tempo. O implacável cobrador. Ao menino, acrescentou prematuros cabelos brancos, o receio de sorrir, olhos tristes, o medo de ferir. À menina foi dado o mesmo medo. Mas a própria natureza a fez mais prática. No milagre da vida lhe rompem as entranhas e mesmo com fome seus seios alimentam. Tão sublime e tão cruel, tão poético e tão real, incoerente.  Reage diferente, sorri e esconde as lágrimas, emerge na roda viva e agarra-se em seus próprios argumentos para sobreviver. Mas conseguimos apesar de tudo, enfrentar nossas escolhas com muita fibra, eu sinto.

Vejo-te agora, depois de explodir teu nome na memória, num repente um banco de praça, a pureza, inevitável lembrança. Como é bom termos tanto para lembrar e gostar, é como possuir tesouros sem ter que explicar muito.  Posso dizer, foi muito bom te reencontrar. Mas se meu impulso maculou algum sonho bonito ou deturpou a imagem de cabelos ao vento, perdoa-me.  Não quero te fazer mal. Quero antes de tudo ser tua amiga e te peço: não deixes mais que a dor te envolva, não contribuas para teu tempo ser menor. E escreve tudo. Leia-se e encontre-se nas palavras.  Porque precisamos, apesar das pedradas e tantos tombos, viver, com humildade e força para recomeçar. Viver, e mesmo na presença do desamor ter alguma coisa a dar. Somos ricos em sensibilidade e acolhida. Viver te peço, pois ainda resta uma brisa na noite e um gesto de carinho a nossa espera.

Desde sempre, Vania Clares

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